Brasil esquartejado
“Não seja o de hoje. Não suspires por ontens… Não queiras ser o de amanhã. Faze-te sem limites no tempo.”
Cecília Meireles
Escrevemos há anos, séculos; temos a mania de escrever sobre aquilo que pensamos e achamos que conhecemos. Mesmo a história mais inventada e imaginada tem o pé numa criação íntima. Claro que cada um tem um critério criativo e, nas nossas vidas, as possibilidades são infinitas. Existimos por isso e para isso. Nosso limite é que pensamos ser o que é, ou, pelo menos, o que pensamos entender. Ou não. Simples.
Mas a realidade hoje nos surpreende e nos assusta a todo instante. São cada vez mais agentes na mídia, ou da mídia, que existem como se o mundo fosse criado com parâmetros difíceis de definir. Os exemplos se multiplicam.
Ainda agora, um youtuber político do Rio de Janeiro, que virou político por conta da superexposição, ganhou quase 300 mil seguidores no dia seguinte à notícia do envolvimento de seu nome em um grande escândalo criminal! E olhe que é um desses casos que faria corar qualquer um antigamente: estupro, assédio sexual e crianças envolvidas. O caos! E, embora o cidadão tenha perdido alguns grandes patrocínios, pois as empresas naturalmente se retraem, o número de seguidores segue crescendo nas redes sociais. Mais de 300 mil em um único dia!
Esse é um fenômeno instigante. Para quem falar? O que falar? Nas disputas fratricidas que ocorrem na definição necessária entre as correntes políticas, como se posicionar quem não faz política partidária? Ou mesmo quem faz e, até por isso, tem que se mostrar ante as questões mais sensíveis para a sociedade. Eu, erroneamente, pensava que a angústia era, de alguma maneira, fácil de resolver: seria apenas se posicionar contra a morte, contra a apologia à tortura, contra a misoginia, contra o racismo e contra a violência …. Meu Deus, é tão óbvio que dói! Mas essa não é a realidade.
Se fosse um jogo de futebol comum, do interior de Minas Gerais, desses em que um dos meninos é o dono da bola, todos saberiam, antes de começar, o resultado da partida. É assim que se fazia o futuro bastante previsível. Mas, atualmente, o dono da bola no perigoso campo da comunicação de massa está em estranhas mãos. E quem joga dentro das quatro linhas do campo, seguindo as regras e obedecendo o que diz a Constituição, tem muito pouco espaço para crescer e para ser lido fora da sua bolha.
Perdemos o debate para estrategistas, robôs e fantoches. Não existe mais a necessidade do aprofundamento nos temas vitais, para depois, em uma conversa aberta, expor as ideias e fazer o convencimento. Os que detêm o poder de falar para milhões de seguidores precisam apenas de um texto de 144 caracteres produzido por uma equipe que acompanha as tendências do momento. É um embate desigual. É como se você, em uma discussão, se preocupasse em conhecer todos os ângulos de um problema, lendo e discutindo os prós e os contras, e fosse nocauteado por quem sequer sabe qual é o problema, mas que conseguiu acertar um gancho no seu queixo, orientado por um marqueteiro sábio em criar fake news e realidades virtuais.
Muitas vezes, sinto que vivemos em um mundo paralelo ao constatar os personagens repugnantes que seguem ocupando espaços colossais. Não são alguns idiotas, são milhares seguidos por milhões! O direitista Nelson Rodrigues acertou quando afirmou que “Os idiotas vão tomar conta do mundo; não pela capacidade, mas pela quantidade. Eles são muitos”.
No mundo real, no qual perder o discurso significa a perpetuação dos fascistas no poder, a nossa responsabilidade é enorme. Como enfrentar esse discurso sem ética e sem limites dentro da ética e dos limites humanistas? Parece simples, mas hoje esse é um dos nossos grandes dilemas.
Não adianta a ilusão de que basta falar a verdade e ela prevalecerá. Não podemos nos dar o luxo de acreditar que o homem médio é bom e saberá de que lado está o justo e o correto. Essa não é a realidade. Foi com base em verdades inventadas e mentiras repetidas que os crápulas chegaram ao poder. Basta ver a balela do kit gay das últimas eleições; era tão ridículo que, no início, nós rimos e desprezamos a força destrutiva de uma história tão absurda. Agora, dá para entender a fixação dos “criativos” marqueteiros ao ver o exército comprar prótese peniana, viagra e leite condensado, como se fosse o atual governo uma orgia permanente. E é.
E a criatividade mórbida não tem limite. Recentemente, um desses idiotas postou nas redes sociais que a China, a Coreia do Norte e eu tínhamos uma mala com poderes de fazer o acompanhamento dos passos do Presidente da República e de outras autoridades. Algo inimaginável! A história viralizou e eu recebi conselhos para rebatê-la. Preferi seguir um ensinamento da minha Patos de Minas, “fama de comedor, poderoso e valente a gente não desmente”. Afinal, estavam me comparando a duas potências nucleares! Mas o fato é que até hoje esse absurdo está rodando na mídia.
Lembro-me do nosso caboclo, Manoel de Barros: “Ando muito completo de vazios. Meu órgão de morrer me predomina. Estou sem eternidades”.
Neste ano, teremos a eleição mais importante da história do Brasil. Até porque poderá ser a última.
Se esse governo fascista se reeleger, ele completará a estratégia de acabar com todas as conquistas humanistas que incorporamos nas últimas décadas. Será o império da barbárie e do caos. Nossa cultura, nossa arte, nossa saúde, nossa educação e nossa segurança, tudo isso passará por uma completa aniquilação. O Brasil será a cara desse grupo que está no governo. Seguiremos cada vez mais ridicularizados mundo afora e expostos à fome e à miséria aqui dentro.
Claro que um pequeno grupo manterá os incontáveis privilégios à custa de 20 milhões de famélicos, de um desemprego de 14% da população e de 116 milhões de brasileiros em insegurança alimentar – aqueles que não têm a certeza se irão comer o suficiente no final do dia.
Mas o que significam esses dados no mundo virtual da comunicação de massa? São apenas números a serem manipulados. A fome, que, para o faminto, dói fisicamente, não é sentida por aqueles que criam a realidade e definem as prioridades. E aí voltamos à angústia que virou nossa frequente companhia: como enfrentar o mundo paralelo no qual esses seres repugnantes transitam sem ter que pisar na mesma lama que eles?
Parece que entramos em um ringue de luta livre, no qual vale tudo, mas nos deram a instrução de ficar dançando balé clássico. Se fosse apenas por cada um de nós, o mais fácil seria descermos do ringue e abandonarmos a luta, pois não nos dispomos a usar os mesmos métodos. Mas, se desistirmos, deixaremos milhões de pessoas dentro desse ringue sendo nocauteadas a todo instante. É como um estupro coletivo. Um Brasil todo sendo esquartejado.
Não temos outra opção a não ser resistir. Sem usar os golpes baixos, mas, socorrendo-me do eterno Pessoa, no Poema em linha reta, “Eu, que quando a hora do soco surgiu, me tenho agachado para fora da possibilidade do soco.”.
Já se faz a hora de não nos agacharmos mais.
Antônio Carlos de Almeida Castro, Kakay