Poesia e resistência, por Kakay
POR ANTÔNIO CARLOS DE ALMEIDA CASTRO
“É pecado sonhar?
– Não, Capitu. Nunca foi.
– Então por que esta divindade
nos dá golpes tão fortes
de realidade e parte nossos sonhos?
– Divindade não destrói sonhos, Capitu.
Somos nós que ficamos esperando, ao invés de acontecer”.
Dom Casmurro, Machado de Assis
Neste momento de isolamento, de angústia, de medo, de perplexidade frente ao desconhecido é natural que cada um encontre um refúgio próprio, uma maneira de não perder um certo fio de racionalidade. É muito interessante ouvir de amigos as mais diversas formas de tentar manter a lucidez. O imponderável tem uma força avassaladora na construção das nossas fragilidades interiores. Nem todos se permitem reconhecer que, muitas vezes, o abismo está mesmo às nossas portas ou, o que é pior, muitos já lutam para ver qual a fundura do fosso. O fosso humano, sabemos, tem muitos fins ou, até, fim nenhum.
Viver permanentemente dentro de um círculo invisível e imaginário pode cobrar muito disto que chamam de sanidade.
Muito impressionante ouvir certos relatos de quem esteve infectado ou perdeu alguém amado para o vírus. A descrição da enorme solidão das UTIs, gélidas, aterrorizantes. A cruel insegurança, que muitas vezes tem o choro como escape ou o soluço contido, é uma característica deste enfrentamento do desconhecido. A experiência do velório virtual, sem poder abraçar os entes queridos, os que vão e os que ficam, impregna em nós uma sensação de derrota da humanidade. Tudo me remete a Sophia de Mello Breyner no poema Ausência:
“Num deserto sem água
Numa noite sem lua
Num país sem nome
Ou numa terra nua
Por maior que seja o desespero
Nenhuma ausência é mais funda do que a tua”
A inércia canalha do governo, ao não tratar seriamente a crise sanitária, pode levar a um sentimento de revolta para alguns, de raiva cívica para outros, de apatia para muitos. Nota-se uma estratégia calhorda de sequer ter uma central responsável para a divulgação dos mortos, para não ligar a tragédia da morte a estes abutres. Como se o silêncio os absolvesse. A omissão visa a politizar o vírus ainda mais, pois através dela é possível escolher politicamente os “responsáveis” e ganhar com a crise, com o desemprego, com a morte e com a miséria. Ora são os políticos, a OMS, o Judiciário, o Congresso, a imprensa, os cientistas, ora são outros os culpados. Enfim, quem não tem caráter algum não se importa de sujar as mãos de sangue, pois a única coisa que vale é transferir responsabilidade, é se preparar para a reeleição.
É sempre bom buscarmos a poesia, mesmo nestas horas. O grande Edgar Allan Poe assim nos brinda em O Corvo:
“Que esta palavra nos aparte,
ave ou inimiga!
Eu gritei, levantando.
Volta para a tua tempestade
e para a orla das trevas infernais!
Não deixa pena alguma
como lembrança dessa mentira que tua alma aqui falou!
Deixa minha solidão inteira!
Sai já deste busto
Sobre minha porta!
Tira teu bico do meu coração,
E tira tua sombra da minha porta!
E o Corvo disse:
“Nunca mais”
Mas nós precisamos encontrar nossos refúgios, nossas hipóteses, nossas companheiras, forjadas muitas vezes em algum recanto da alma. A solidão costuma ser uma doce companhia.
Eu criei, para recolher meus escombros, uma “poesia ao cair da tarde”. Todo final de tarde eu fujo do mundo e recito algumas poesias, tendo o pôr do sol como moldura. E dentro desta moldura o Lago Paranoá, que acolhe o sol se pondo como se este derretesse ao encontrar suas águas, a profusão de cores que pintam o céu de Brasília nesta época, os ipês amarelos que parecem lembrar a todos que não há secura, que não há aridez que possa impedir que a beleza vença. Só por vencer. Só para nos encantar. Só para dar, às vezes, cor à tristeza. E as suas folhas caem muito rápido, duram pouquíssimo, como a nos dizer: viva, viva logo, viva com volúpia e intensidade. Mas viva, permita-se.
Certa madrugada, quando lia alguns livros de poesia –afinal, para recitar 7 poesias leio 70 para escolher– chegou uma mensagem no meu WhatsApp. Eu, com vários livros espalhados na mesa, lembrei-me de Clarice Lispector:
“Às vezes sentava-se na rede,
balançando-me com o livro aberto no colo, sem tocá-lo,
em êxtase puríssimo.
Não era mais uma
menina com um livro:
era uma mulher com seu amante.”
Sem saber de quem era a mensagem li, curioso. Uma pessoa desconhecida me dizia que, todas as tardes, recebia de uma amiga as poesias que eu postava. E que esta foi a maneira que ela encontrou de “não embrutecer”. Que era ali, nas minhas poesias, que ela encontrava um dique para não transbordar.
Confesso que me emocionei e vi que a resistência necessária é como um grande abraço de solidariedade. Em época de isolamento, o abraço agasalha o coração. Cada um a seu modo, a gente encontra uma maneira de não só sobreviver, mas de viver, de acreditar, de ser feliz. Não há vírus e nem verme que possam nos vencer. Não sou destes que dizem que sairemos mais fortes e melhores desta hecatombe. Mas sairemos juntos e vamos buscar fazer do mundo um lugar mais solidário, mais justo, mais igual. Não vamos nos embrutecer.
Resistiremos juntos com Pessoa, na pessoa de Caieiro:
“Sei ter o pasmo essencial
Que tem uma criança se,
Ao nascer,
Reparasse que nascera deveras….
Sinto-me nascido a cada momento
Para a eterna novidade do Mundo”
Publicação original: Poder 360