CAETANO E A ARTE COMO RESISTÊNCIA
“E enquanto estiverdes
À frente da Pátria
Sobre nós, a mordaça.
E sobre as nossas vidas
– Homem políticoInexoravelmente, nossa morte.”
Hilda Hilst, Poemas aos homens do nosso tempo
Em fevereiro de 2020, o Brasil teve o primeiro caso diagnosticado de Covid 19, enquanto
a Europa já havia registrado centenas. No mês seguinte, março, tivemos o início dos
óbitos pelo vírus e o país começou a tomar atitudes um pouco mais severas. Não o país
como um todo, pois o negacionista do Presidente Bolsonaro já cultuava a morte e
desprezava qualquer evidência científica.
Com a perplexidade geral das pessoas ante o agravamento do colapso global, a
tendência do mundo dito civilizado era tentar entender a gravidade da crise sanitária. E
encontrar na ciência as soluções para evitar o caos na economia e um número elevado
de óbitos. Mal sabíamos que estávamos entrando em um inferno e que teríamos mais
de 650 mil brasileiros mortos pelo vírus e pela irresponsabilidade do governo brasileiro.
Àquela época, esse governo já demonstrava a que veio: o Ministro do Meio Ambiente,
na reunião ministerial do dia 22 de abril, resolveu aproveitar-se do fato de que todos, a
mídia inclusive, estavam preocupados com a pandemia para passar reformas “infra
legais”, visando “simplificar” e “desregulamentar” a legislação ambiental. Usou a infeliz
expressão “passar a boiada” para tentar enganar o povo brasileiro. E o que se viu a
seguir foi uma avalanche de medidas, tais como a anistia aos desmatadores, a
demissão de fiscais e a militarização da área. Enfim, um escândalo que chocou o
mundo.
Foi um longo momento de terror explícito. Devido ao isolamento social, acompanhar as
notícias da crise de Covid era um programa obrigatório e com certo ar de filme de guerra.
A televisão anunciava mais de 3000 mortos por dia em razão do vírus. E ainda tínhamos
que conviver com um Presidente da República insensível e assassino que desdenhava
da dor dos brasileiros. Um horror. Pensávamos que não poderíamos assistir a uma
barbárie maior. Deveríamos ter nos socorrido de Victor Hugo: “Chega sempre a hora em
que não basta apenas protestar: após a filosofia, a ação é indispensável.”.
Quem acompanha o dia a dia do Brasil sabe que esse governo, autoritário e com viés
fascista, sexista, racista e misógino, desestruturou o país. Desmantelou as políticas
públicas; corroeu as bases civilizatórias, a saúde, a cultura, a educação, a segurança e
o meio ambiente. Todas as áreas sofreram a ação deletéria e bárbara do governo
Bolsonaro. Mesmo se ganharmos as eleições em outubro, vamos demorar décadas para
voltar ao patamar civilizatório que ostentávamos antes de tudo isso. É bom sempre
ressaltar que voltamos para o mapa da fome da ONU, do qual havíamos saído em 2012.
Uma tragédia.
Agora, quando o país e o mundo começam a respirar ares de expectativa de melhoras
na crise sanitária e o Brasil passa a sonhar com a chance de tentar voltar a ser feliz, a
partir das eleições de outubro, eis que eclode uma guerra sanguinária, cruel e covarde.
Sem entrar em questões geopolíticas, estamos presenciando, ao vivo e a cores, o
massacre de um povo dentro das suas fronteiras. Um país independente! O princípio
internacional da autodeterminação é usado pela ONU como uma biruta de aeroporto. É
a barbárie institucionalizada.
Numa guerra, tudo é cruel e o bombardeio em áreas civis começa a ocupar menos
espaços nos telejornais. Mais ou menos como foi na época da cobertura jornalística da
Covid: primeiro, nos horrorizamos com o anúncio de 1000 mortes diárias; depois, 2000
mortes; indo para 3000 mortes anunciadas, enquanto o jantar era servido e antes de
passar para a Netflix e assistir a um filme. Até que começamos a quase comemorar o
anúncio de 500 mortes diárias. Um embrutecimento para resistir ao massacre.
A tragédia do bombardeio dos civis ucranianos cede espaço ao drama cruel dos
refugiados. Mais de 2 milhões de ucranianos já abandonaram a terra natal em 15 dias
de guerra. Na imensa maioria, são crianças e mulheres. A lei marcial não permite a
saída de homens de 18 anos a 60 anos.
Além do drama dos emigrados, acompanhamos o rapto de meninas e meninos para
servirem de escravos sexuais. Crianças são abordadas enquanto fogem, muitas vezes
sozinhas, para as fronteiras. E estupros, dezenas de estupros. Crianças e mulheres
estupradas numa guerra estúpida e assassina. Bombardeio de hospitais, creches e
maternidades.
Para nós, que acompanhamos de longe, restam a indignação e a perplexidade. Para
quem está sofrendo a força da barbárie, é literalmente a morte e o fim. A insanidade
parece não ter limites. Lembro-me de Clarice Lispector, “Não quero ter a terrível
limitação de quem vive apenas do que é passível de fazer sentido. Eu não: quero uma
verdade inventada.”.
Com a repercussão do massacre, a reação de vários países se faz inevitável e os
embargos à Rússia começam a se desenhar. Vai ser a hora de o povo russo sofrer o
reverso da ação do Presidente Putin, esse autocrata que parece estar comandando uma
guerra não real. Já temos notícias de milhares de prisões diárias dos moscovitas que
se manifestam contra a guerra. Sabemos que nunca se pode confiar na imprensa
“oficial” russa e muito menos nos números divulgados. Basta lembrar do jornalista russo
Dmitry Muratov, prêmio Nobel da Paz em 2021, que, em seu discurso em Oslo, quando
foi receber o prêmio, frisou a escalada de violência contra os jornalistas e bradou por
liberdade de imprensa. Ele era o editor chefe do jornal Novaya Gazeta, o principal jornal
de oposição na Rússia.
O embargo econômico trará inevitavelmente muitas dificuldades à população russa. E
neste mundo globalizado parece haver uma outra guerra: a da imbecilidade. Há uma
perseguição implacável e, muitas vezes, sem sentido ao mundo das artes, ao teatro e à
cultura.
Em Florença, cidade das artes e berço da civilização, há um movimento para derrubar
uma escultura do gênio da literatura russo Fiódor Dostoiévski que foi erigida quando do
bicentenário do autor. Em Gênova, um festival dedicado ao autor foi cancelado, bem
como cursos em outras cidades. A censura, claro, não é só ao escritor russo, ela atinge
milhares de estudantes, professores e amantes da literatura.
E vários cancelamentos de artistas russos se viram ao longo do mundo. É como uma
venda que se coloca nos olhos da humanidade. A venda que cega os donos da guerra
e que teima em cegar os que tentam se esconder dos horrores do conflito exatamente
nas artes, nos livros e na música. Não só nos impingem a dor, mas, sádicos, nos
impedem de sonhar. Tiram-nos o ar e nos asfixiam. Não percebem esses, que como
forma de protesto cancelam Dostoiévski, o Ballet Bolshoi e a Filarmônica, que a única
maneira de evitar outras guerras e outros massacres é exatamente através da cultura,
da leitura e da disseminação do humanismo.
Aqui mesmo no Brasil, desta vez escondido no barulho das bombas, o Congresso cuida
de mudar a legislação ambiental com graves retrocessos. Até agora, a maior resistência
e a que mais mobilizou o país foi exatamente uma manifestação liderada por Caetano
Veloso e mais de 40 artistas. É a arte abrindo caminho e espaço para tentar acordar um
povo que vê, novamente, incrédulo, “passar a boiada”.
E foi com uma canção que Caetano fez o Brasil prestar atenção no risco que nos ronda,
ao cantar no Congresso Nacional, depois de ter ido ao Supremo Tribunal, a música
TERRA: “Terra, Terra, por mais distante, o errante navegante, quem jamais te
esqueceria?”.
Antônio Carlos de Almeida Castro, Kakay