Fuego, Lenin e o cavanhaque comunista
“Quando se olha muito tempo para um abismo, o abismo olha para você.”
Friedrich Nietzsche
O mundo paralelo dos bolsonaristas não para de nos surpreender. Está sendo divulgada nas redes sociais uma lista na qual esses seres escatológicos apontam 100 nomes de lugares em Brasília, bares e restaurantes, que não devem ser frequentados por serem “comunistas”. Pergunto-me em que lugar vivem essas pessoas? O que leem? Com quem conversam? Onde estudaram? Que filmes assistem? Teriam livros em casa?
Enfim, mesmo para um mundo paralelo, as posições ridículas envergonham e causam perplexidades. Se fôssemos descrevê-los em um livro ficcional, qualquer escritor teria dificuldade em criar tantas verdades inventadas. Como ensinou, com humor, o matuto Manoel de Barros: “Noventa por cento do que escrevo é invenção. Só dez por cento é mentira”.
Parece existir um círculo invisível de giz onde habitam e eles têm a sensação de poder fazer tudo. E aí ousam. Agem sem pudor, sem limites, sem critérios. São indigentes funcionais que buscam a imputabilidade como defesa para o livre exercício do ódio destilado pelo chefe.
Entre os estabelecimentos apontados como “comunistas”, está o Fuego, do qual sou sócio. É o melhor restaurante de carne do Brasil. O local tem sido muito frequentado por políticos dos mais diversos matizes ideológicos. É uma casa para democratas. Assim como foi o velho e bom Piantella, do qual também fui sócio, que acolhia a todos tendo como lema “aqui situação e oposição sentam à mesma mesa”. Essa lista, assim como vários outros exemplos, é uma explicitação da política de ódio e de discriminação bolsonarista.
Estamos a poucos dias de superar essa fase trágica, dramática mesmo, da história brasileira. Claro que ainda viveremos com as sequelas dessa doença, mas a democracia tratará de jogar o grupo fascista de volta ao entulho da história. O destino será a sarjeta de onde não deveriam nunca ter saído. Socorro-me na grande Cecília Meireles: “Não seja o de hoje. Não suspires por ontens… Não queira ser o amanhã. Faze-te sem limites no tempo”.
O medo que esses beócios têm do comunismo é fruto de décadas acumuladas de ignorância. Uma ignorância sedimentada, convicta. São incapazes de definir do que têm realmente medo e, assim, viram massa de manobra, facilmente manipulados por “líderes” que rezam numa cartilha de mentiras e frases de efeito. Por isso mesmo, enquanto os aloprados estão fazendo um culto de adoração a pneus e a extraterrestres em frente aos quartéis e aos tiros de guerra, passando frio, tomando chuva, usando banheiros químicos e comendo em marmitas, a imprensa anuncia que o Presidente da República, usando o avião presidencial, resolveu abandonar o país a poucos dias da posse do Lula e se refugiar nos EUA junto ao Trump. Humilhante. Degradante. Logo agora que o Departamento de Justiça americano determinou aos Procuradores Federais que processem criminalmente o Trump pela invasão do Capitólio. E consta que existem brasileiros envolvidos nessa investigação estadunidense.
O medo que eles têm do comunismo tem a mesma raiz no ódio que nutrem por pessoas bem resolvidas sexualmente. Pessoas felizes que se assumem como são. É o que os leva a acreditarem no kit gay, a baterem e desprezarem as mulheres, a terem raiva dos negros, a perseguirem os pobres. Enfim, todo o preconceito possível guardado dentro de um armário em que esses seres estranhos se trancam com medo de todos e, principalmente, deles mesmos. Substituem a impotência sexual por uma arma de grosso calibre e se escondem através da prepotência e da violência próprias dos inseguros e infelizes.
Há uma história cômica de um desses descerebrados para justificar o motivo de eles me classificarem como comunista.
Em 1993, eu fui a Moscou operar meu olho, numa velha briga minha para não ficar cego. Um acidente me cegou, mas eu insistia em tentar enxergar. Dizia sempre que era impossível viver sem ler, sem ver as cores do mundo, sem sentir a alegria, ou o desespero, nos olhos das pessoas que amamos. Depois de 12 cirurgias no Brasil, ataquei-me para a Rússia para ser operado pelo grande oftalmologista Fiodorov.
Moscou fervilhava. A crise constitucional de 21 de setembro a 5 de outubro de 1993. Um impasse entre o Presidente Boris Iéltsin e o Parlamento levou ao ataque que colocou fogo na Câmara Branca – a Casa Branca russa -, onde estavam os deputados insurgentes do Soviete Supremo. Assisti ao ataque enquanto desviava dos tanques e dos tiros indo para o aeroporto pegar o avião para Paris.
Naquela época, existia um impasse sobre o que fazer com o corpo do Lenin, o fundador da União das Repúblicas Socialistas Soviéticas, que estava exposto embalsamado no Mausoléu de Lenine, na Praça Vermelha, desde 1924. Parte dos dirigentes queriam cremar o corpo para acabar com a visitação. E eu queria ver o corpo do velho Lenin. Enquanto acompanhava a discussão se seria ou não cremado o líder comunista, eu me hidratava com vodka e caviar. Até que veio o anúncio, no rádio, que me foi traduzido por uma amiga russa, afirmando que, em uma hora, o Mausoléu seria aberto a visitação. Imediatamente eu me dispus a ir à Praça Vermelha.
Antes, cuidei de tomar um banho e, ao me ver frente ao espelho, com uma barba espessa, resolvi fazer um cavanhaque em homenagem ao velho Lenin. Nunca havia feito isso, mas achei adequada a homenagem. Assim, fui à visita com um cavanhaque no rosto que, por sinal, cultivo desde então, há longos 29 anos.
Contei essa singela história para alguns amigos e, para os bolsonaristas, é a prova inconteste: sou comunista! Daí a implicarem com meu restaurante foi um pequeno passo. Para quem virou as costas para a democracia e para o Estado Democrático de Direito, qualquer pretexto serve para justificar o ódio, a intolerância, a violência. Esses são os insumos para o crescimento do fascismo. Felizmente, nós estamos derrotando esse tumor e vamos fazer do Brasil um lugar onde a certeza de um mundo mais justo e igual comove a todos. Para esse povo estranho, quem é solidário é comunista.
Lembrando Martin Luther King, “O que me preocupa não é o grito dos maus, mas o silêncio dos bons”.
Antônio Carlos de Almeida Castro, Kakay