É preciso ser feliz

Temos ódio à ditadura. Ódio e nojo.”
Ulysses Guimarães

Há 40 anos, visitei Portugal pela primeira vez. Era um país rural, as estradas eram
muito ruins e as mulheres, especialmente no interior, vestiamse de preto com
vestidos longos e lenços na cabeça. Já era lindo, mas havia uma certa tristeza no ar,
mais para Florbela Espanca do que para Miguel Torga. Talvez um lirismo de Pessoa,
na pessoa de Caeiro. Nós, brasileiros, éramos reverenciados e, muitas veze s, o
português, ao contar que estava indo para Paris, dizia que estava
“indo à Europa.

Sempre me encantaram as terras portuguesas e lembrome, certa vez, de ler uma
história do Jorge Amado, quando lhe perguntaram qual o maior prêmio que ele tinha
recebido logo ele, que recebeu todos , e ele respondeu contando um caso. Disse
que estava andando com a Zélia numa vila pequena e, ao virar uma esquina, viu que
um gato fugiu assustado do colo de uma menina que gritou:
Nassib, volte cá”. Ele,
curioso, perguntou:
por que ele se chama Nassib? e ouviu:
porque é macho, se
fosse fêmea, seria Gabriela. Chequei a história, recentemente, com a Paloma
Amado. Isso é Portugal.

Ao longo dos anos, tenho vindo muito a Portugal. Há pouco tempo, participei de um
festival literário em Óbidos, uma vila medieval com 56 habitantes dentro das
muralhas e 9 livrarias, inclusive numa igreja dessacralizada. Um charme. Mas o que
me encanta mais é a alegria hoje dos portugueses. As cidades, especialmente
Lisboa, abarrotadas de turistas que, com uma segurança incrível, andam pelas
ladeiras, bares, festas, casas de fado e restaurantes até de madrugada. As livrarias
e museus, sempre lotados, e as dezenas de línguas pelas ruas nos dão a impressão
de uma torre de Babel. O turismo já representa 17% do PIB nacional. E tende a
crescer. O português está feliz, radiante e confiante. O 25 de abril aqui é uma das
festas mais bonitas do mundo, como um 14 de julho em Paris. A Avenida da
Liberdade se transforma numa ChampsÉlysées. E os cravos vermelhos se
multiplicam pelas lapelas.

A entrega do prêmio Camões para o Chico Buarque foi muito emocionante. Em pleno
Palácio de Queluz, o Presidente português, Marcelo, e Lula fizeram discursos
poéticos e profundos e, por coincidência, citaram uma mesma frase de José
Saramago ao elogiar um livro do Chico. Sintonia entre os nossos presidentes.

No outro dia, os discursos, na Assembleia Legislativa, do Presidente daquela casa e
do Lula, mais uma vez, demonstraram enorme afinidade na defesa da liberdade.
Claro que houve resistência, insignificante, da extrema direita, o que era esperável.
Sabemos que, com a volta do Lula ao poder, precisamos alargar essa empatia e ver
o Brasil feliz de novo. A derrota do fascismo nas urnas, nas últimas eleições, fez
nascer uma esperança do país voltar a ser feliz de novo.

Tudo isso só vale a pena se nosso povo conseguir esquecer um pouco as nossas
dificuldades e os nossos dramas para acreditar em um novo tempo. Um tempo no
qual a justiça social e a igualdade sejam nossos nortes e a determinação de
consolidar o Estado democrático de direito seja uma verdade concreta. Foi muito
lindo ver, aqui em Lisboa, jovens nas ruas cantando contra o fascismo. Alegres e
felizes, com uma vontade real de mudar o destino e continuar sepultando Salazar.

Democracia exige isto: resistir todos os dias. Toda hora lembrar a dor do passado.
Não esquecer nunca os horrores da Ditadura. Os crápulas da história, como
Bolsonaro e Salazar, servem para manter viva a determinação de um mundo melhor.
Quando vejo milhares de portugueses nas ruas, durante os dias e as madrugadas,
tenho a certeza de que o homem nasceu para ser livre. Sinto crescer em mim aquela
esperança de um Brasil feliz cumprindo seu destino rumo à Democracia e à justiça
social.

Foi bonita a festa, fiquei contente e ainda guardo, renitente, um velho cravo para
mim. Um país que tem um Chico Buarque e é presidido por um líder como o Lula
sabe que tem um destino a cumprir rumo à justiça social e que a felicidade parece
tão vizinha que temos a certeza de que ela é real e é de todos nós. E seremos todos,
como na letra da música Bella Ciao, uma flor da resistência sem precisar morrer pela
liberdade. Como nos ensinou Clarice Lispector,
Liberdade é pouco, o que eu desejo
ainda não tem nome.

Antônio Carlos de Almeida Castro, Kakay

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