Pra não dizer que não falei das dores
“Eu sempre guardei nas palavras os meus desconcertos.”
Manoel de Barros
É impossível superar um trauma se não fizermos um enfrentamento real das feridas e
de suas sombras. O Brasil ainda passa por um momento pós–traumático dos ataques à
democracia e das consequências nefastas de quatro anos de um governo corrupto,
banal e fascista. As garras do fascismo lembram a famosa incursão do velho Pessoa
pela área da publicidade, quando cunhou frase instigante e brilhante ao fazer uma
propaganda para a Coca–Cola: “Primeiro estranha–se; depois entranha–se”. O fascismo
é como uma praga que, sub–repticiamente, deixa marcas nas pessoas e na sociedade.
Derretem–se os valores humanistas e corrompem–se os sentimentos humanitários. A
própria noção de civilização tende a sofrer, ante a barbárie que se instala.
Por isso mesmo, repito à exaustão: é necessário valorizar todas as pessoas e
instituições que conseguiram fazer frente – cada um à sua maneira e colocando o pé na
porta –, para impedir a perpetuação do desastre que representa o bolsonarismo e seus
consectários. Valorizar e apoiar. Não tenho dúvida de que estivemos todos cercados por
um círculo de giz invisível, que estrangulou alguns e serviu de proteção a outros. Nem
todas as pessoas reagem bem a pressões e ameaças. Esse bando que saqueou o país
não hesitou em, estrategicamente, inocular o ódio, a violência, o medo e a desesperança
no seio da sociedade. Sem escrúpulos, fez da mentira e do engodo suas armas. O país
foi como que emparedado e submetido a um tratamento de choque, onde vendas
tampavam os olhos, o ar era rarefeito e as vozes saíam roucas ou até emudeciam.
Resistir foi um ato de coragem. E de necessidade.
Passados os embates que levaram à vitória da democracia nas urnas, é hora de
reconstruir o país e voltar a respirar ares democráticos. Tenho insistido que, para
sairmos mais fortes nesses momentos, não podemos ceder à tentação de usar os
mesmos métodos da barbárie que combatíamos. Senão, a barbárie terá vencido e o
processo civilizatório dará passos para o abismo. Este é o principal sinal de
amadurecimento: dar aos inimigos – e aqui, no caso, são mais do que adversários – toda
a estrutura democrática que eles tentaram liquidar.
os golpistas e abutres da civilização, sendo responsável pela manutenção da
institucionalidade, todos os olhos se voltam para ele neste momento. E, mesmo
revolvendo as dores que não devem e não podem ser esquecidas – até para não serem
repetidas –, agora é hora da maturidade democrática. Mais do que nunca, faz–se
imperioso termos o rigor e o cuidado com os direitos dos que atentaram contra a
Constituição e contra o Estado democrático de direito. E a saída é simples: cumprir a
Carta Magna, sem perseguição, mas sem nenhum tipo de perdão, anistia ou
complacência. E, principalmente, sem permitir que os excessos covardes que marcaram
esse grupo, desde a era lavajatista, manchem o processo penal democrático a que
serão submetidos. Já é hora dos três poderes se ocuparem dos seus espaços naturais,
cada um na sua vocação constitucional. Só assim restarão tempo e oportunidade para
nós, pessoas comuns, darmos asas aos nossos sonhos, em busca de uma
tranquilidade, e até felicidade, que pareciam ser inatingíveis.
Lembrando–nos do irrequieto Leminski:
“Uma pálpebra,
mais uma, mais outras,
enfim, dezenas,
de pálpebras sobre
pálpebras
tentando fazer
das minhas trevas
alguma coisa a mais
que lágrimas.”
Antônio Carlos de Almeida Castro, Kakay