CHEIRO DE CADEIA

“Deixei de rezar. Nas paredes rabiscadas de obscenidades nenhum santo me escuta. Deus vive só e eu sou o único que toca a sua infinita lágrima. Deixei de rezar. Deus está noutra prisão.”
Mia Couto
Assim que começaram a ser presos os que invadiram e depredaram as sedes dos Três Poderes, em Brasília, no fatídico 8 de janeiro, o que se ouvia dos bolsonaristas era: “Se prenderem o Bolsonaro ou um general, o Brasil vai parar”. Depois de mais de 400 golpistas encarcerados e condenados, definitivamente, pelo Supremo Tribunal, ainda se escutavam, agora com vozes mais tímidas, as mesmas falácias sobre certa bravata em defesa dos líderes da organização criminosa armada – na definição do Chefe do Ministério Público.
Em 14 de dezembro de 2024, o país amanheceu com a notícia da prisão do general de quatro estrelas, ex-ministro-chefe da Casa Civil e ex-ministro da Defesa do governo Bolsonaro, Braga Netto, por ordem do relator do inquérito, ministro Alexandre de Moraes. Em 14 de março de 2025, a Primeira Turma do Supremo Tribunal manteve, à unanimidade, a sua prisão preventiva com fundamento na tentativa de interferir nas investigações. O Brasil não parou.
Em 26 de março, também por unanimidade, os cinco ministros da Primeira Turma receberam a denúncia e o ex-presidente Bolsonaro, os generais Braga Netto, Augusto Heleno e Paulo Sérgio Nogueira, o ex-ministro da Justiça Anderson Torres, o ex-comandante da Marinha Almir Garnier, o ex-diretor da Abin Alexandre Ramagem e o ex-ajudante de ordens Major Cid viraram réus e o processo caminha, com respeito ao devido processo legal, a passos largos para uma condenação de todos a penas próximas dos 30 anos. Depois do trânsito em julgado, a cadeia será o caminho natural. E o país não vai parar, ao contrário, a estabilidade democrática estará fortalecida.
Hoje, é comum ouvir que o general Braga Netto está preso, mas em uma sala na Vila Militar. É assim que tem que ser. A lei tem que ser cumprida. Ele está encarcerado em uma dependência militar e tem esse direito. Mas está preso. Com as restrições inerentes ao momento processual. Se condenado, e será, com o trânsito em julgado da decisão do Supremo Tribunal, o seu destino será inapelavelmente a prisão comum. Para ele, provavelmente, será Bangu 8, no Rio. Bolsonaro deverá ir morar na Papuda, em Brasília. É assim que prevê a legislação vigente. O Lula ficou preso, sem condenação transitada em julgado, por 580 dias numa sala da Polícia Federal. Foi absolvido e conseguiu a liberdade. Tivesse sido condenado, ao final, a lei seria cumprida e ele teria ido para a Papuda.
Na verdade, os que estão presos provisoriamente não conhecem aquilo que o detento comum no Brasil tem que conviver: o cheiro da cadeia! As verdadeiras masmorras medievais fazem com que o prisioneiro tenha que conviver com condições sub-humanas. Sem dignidade. Sem um espaço minimamente digno. Sem uma alimentação que possa ser chamada de razoável. Um lixo. Uma afronta aos direitos dos apenados. Quem perde a liberdade não perde os demais direitos inerentes à pessoa humana.
Talvez o cárcere desses membros da extrema direita sirva para uma discussão sobre a situação dramática dos presídios brasileiros. Quando os golpistas foram presos, começamos a receber telefonemas de bolsonaristas horrorizados com as condições desumanas nas cadeias. Reclamavam da comida, das celas superlotadas, da sujeira dos presídios, da dificuldade para receber visitas e do constrangimento das revistas íntimas. Ou seja, de repente a extrema direita se humanizou! Resolveu desistir do discurso de que “bandido bom é bandido morto” e que nós, humanistas, somos “defensores dos direitos humanos dos bandidos…” Penso que esse momento único, em que membros da extrema direita golpista serão condenados a penas perto de 30 anos, e que começarão a viver no chão da cadeia, sentindo o seu cheiro, poderá propiciar uma discussão séria sobre o sistema penitenciário.
Durante anos, dediquei-me a discutir o podre sistema carcerário no Brasil. Nunca consegui ser ouvido pela direita desumana e banal. Agora, nós podemos avançar. Em nome dos direitos humanos de todos. Sei que eles estão ainda em um estado de medo e perplexidade. Mas logo sentirão aquilo que vai impregná-los para todo o sempre, nas roupas, nas entranhas, no imaginário e nas noites de insônia: o cheiro da cadeia!
Recorro-me ao grande Pessoa, no Livro do Desassossego: “Tenho a náusea física da humanidade vulgar, que é, aliás, a única que há. E capricho, às vezes, em aprofundar essa náusea, como se pode provocar um vômito para aliviar a vontade de vomitar”.
Antônio Carlos de Almeida Castro, Kakay