O DIPLOMA ELEITORAL E O SALVO CONDUTO

Está achando ruim essa composição do Congresso? Então espera a próxima: será pior. E pior, e pior…

Ulysses Guimarães, ex-presidente da Câmara dos Deputados

 

Uma das regras básicas de uma investigação criminal é que ela se dê de maneira discreta, sigilosa até, para impedir que o investigado tome medidas que possam dificultar ou até impedir a apuração. O ideal é que a pessoa investigada só se dê conta da operação quando da fase ostensiva – seja pela intimação para depor, pela busca e apreensão ou, até mesmo, pela prisão. Imagine a autoridade comunicar ao investigado que ele está sendo interceptado telefonicamente? Parece piada de mau gosto.

 

Por isso mesmo, sedimentou-se na jurisprudência brasileira que o advogado regularmente constituído tem acesso a tudo o que foi encartado nos autos, menos as diligências em curso. Sem uma reserva, um certo sigilo, a investigação tem um grau de dificuldade inúmeras vezes maior. E pode ser, até mesmo, inviabilizada.

 

Pois a Câmara dos Deputados aprovou – por 353 a 134 no primeiro turno e 344 a 133 no segundo – a chamada PEC da blindagem. Com o texto que agora será submetido ao Senado, para que o Supremo Tribunal possa instaurar um inquérito contra um parlamentar, por crime comum, será necessária a autorização prévia da Câmara ou do Senado. É isso mesmo. A título ilustrativo, um deputado é pego desviando milhões em emendas – exemplo, claro, hipotético – a Câmara terá que permitir a abertura da investigação.

 

É a mais absoluta certeza de que os parlamentares, se isso passar no Senado, estarão acima do bem e do mal. Norma semelhante vigorou no Brasil de 1988 a 2001 e, nesse período, o Congresso simplesmente não autorizava o processo criminal. Muitas vezes, os pedidos de licença tramitavam indefinidamente. Era a certeza da impunidade que agora os congressistas correm atrás. E, num gesto de extrema covardia, a Câmara aprovou, por 314 votos a 168, o voto secreto nas votações para a abertura. O espírito de corpo poderá ser exercido solertemente.

 

O Supremo Tribunal acaba de condenar os membros de uma organização criminosa armada, cujo líder era o ex-presidente Bolsonaro. O processo, que está em fase final, foi público, acompanhado pelo mundo inteiro, com todas as garantias do processo penal democrático. Logo os condenados estarão cumprindo pena nas penitenciárias dos seus respectivos estados. É assim que se faz num Estado democrático de direito.  O processo foi acompanhado pelo mundo e é incrível o reconhecimento da maturidade institucional do Brasil, elogiada em todo o mundo democrático. O país soube enfrentar uma tentativa de golpe e condenou um ex-presidente, generais, um almirante, ex-ministros e um deputado federal. Se a PEC estivesse em vigor, o parlamentar estaria imune ao processo penal. Condenam-se um ex-presidente e generais, mas não mexam com os príncipes.

 

O Congresso passará a ser o passaporte para a mais completa impunidade. É claro que deve ser mantida a inviolabilidade dos deputados e senadores por quaisquer opiniões, palavras e votos. Essa imunidade material é do Parlamento. Defende o Parlamento. O congressista nem sequer pode abrir mão dela. No caso da PEC, o que se busca é proteger, por exemplo, quem rouba dinheiro público, de merenda e de hospitais.

 

Ao que tudo indica, o motor para a rapidez da aprovação não foi o julgamento do presidente Bolsonaro e dos seus asseclas. Nem o alardeado medo do ministro Alexandre de Moraes. O pavor que fez o Congresso tremer vem da investigação das emendas, sob a coordenação do ministro Flávio Dino. O relator havia acabado de suspender emendas PIX a 9 municípios. Os valores estão calculados em 725 milhões. Mas tem mais, muito mais. Fala-se, em Brasília, que pelo menos 90 parlamentares estão investigados. Em Brasília, fala-se muito. Mas, na dúvida, é melhor passar logo uma PEC que garanta que os que colocaram, nos próprios bolsos, o dinheiro público continuem a usá-lo impunemente, inclusive para financiar as próprias futuras candidaturas.

 

E se você acha que não pode piorar, aguarde. Todos nós sabemos que, no Congresso e nas Casas Legislativas espalhadas pelo país, existem parlamentares eleitos com o dinheiro vindo do narcotráfico, da milícia e do crime organizado. Com a PEC, vai deixar de ser interessante para esses grupos criminosos elegerem seus representantes. Afinal, eles próprios poderão se candidatar, pois levarão junto com o diploma eleitoral um salvo-conduto. Um passaporte para o crime. Nem mesmo serão processados. São realmente assustadores os rumos que se anunciam na vida política brasileira.

 

Remeto-me a Sophia de Mello Breyner:

A memória longínqua de uma pátria

Eterna mas perdida e não sabemos

Se é passado ou futuro onde a perdemos.

 

Antônio Carlos de Almeida Castro, Kakay

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