A delação da delação

“Não! Não sou o Príncipe Hamlet, nem pretendi sê-lo. Sou um lorde assistente, o que tudo fará por ver surgir algum progresso, iniciar uma ou duas cenas. Aconselhar o príncipe; enfim, um instrumento de fácil manuseio.”

T.S. Eliot, A canção de amor de J. Alfred Prufrock

 

“Quem é você? Adivinha, se gosta de mim?”. Essa é uma música que me embalou ao longo da vida. Na advocacia – e eu faço isso somente há longos 40 anos – as respostas a essa pergunta tendem a ser, no mais das vezes, surpreendentes.

Claro que temos histórias meritórias, de Sobral ou Pertence, mas elas são, infelizmente, as exceções no mundo dos advogados. Não são eles que representam, na maior parte do tempo, a classe. A pergunta que nós, advogados, temos que fazer é: quem somos nós?

O importante instituto da delação, tão relevante no combate ao crime organizado, foi estuprado pela republiqueta de Curitiba, coordenada pelo político Sérgio Moro e seu grupo de procuradores. O que cada vez vem mais à tona é o fato de existir um grande número de advogados que fazia parte do jogo armado para corromper o sistema de justiça.

Nosso olhar, neste momento de crítica e descobrimento, deve ser para os que usurparam o nome da Ordem. Advogados que se dispuseram a vender o prestígio da classe e se locupletaram em nome de um banditismo escondido em detrimento da advocacia. Pseudodefensores da ordem democrática e falsos representantes da categoria. Enquanto vários de nós nos expúnhamos, enfrentando os asseclas de um juiz que tinha um projeto político, hoje desmoralizado como chefe da força-tarefa da Lava Jato de Curitiba, os falsos advogados se dispunham a fazer o jogo da repressão.

Isso não é pouca coisa e deve ser debatido entre nós. Existiu até recentemente – ou talvez ainda exista – uma linha auxiliar do Ministério Público em detrimento da advocacia e do Estado democrático de direito, que são os advogados de aluguel. Advogados à disposição para referendar a barbárie que se instalou com a corrupção do sistema de justiça, em troca de posições de poder ou até mesmo de um falso prestígio acusatório. Sim, o exercício profissional é e deve ser sempre livre, mas a crítica é pertinente, pois esse tipo de atuação se afasta completamente dos propósitos, das razões de ser e de existir da advocacia.

Hoje, sabemos das facilidades vendidas por esses canalhas e, dia após dia, mais casos de falsas delações, muitas delas arquitetadas pelos próprios advogados, vêm à tona. Não traíram só a advocacia, o que já seria abjeto; traíram seus clientes, traíram o sistema de justiça, traíram a história do Brasil. Nunca uso a expressão “bandido” para me referir a um condenado, mas, neste caso, me permito ser extravagante, pois esses advogados flertaram com um certo banditismo por usarem a carteira da Ordem como escudo! Vamos esperar que a OAB não os proteja. A Ordem também tem que servir, todos sabemos, para eliminar esses elementos que envergonham a classe e que desonram a advocacia ao tergiversarem com os direitos dos seus clientes, já tão massacrados e fragilizados com a indústria da delação.

Qual é a situação real? O país se mobilizou para o combate à corrupção. Os membros da força-tarefa de Curitiba, hoje desacreditados, coordenados pelo corrupto ex-magistrado Moro, vendiam uma falsa história enquanto corrompiam o sistema de justiça. Foram desmascarados. O juiz político e seus procuradores aliados foram flagrados e estão desmoralizados.

E os advogados? Os comparsas do sistema? Quando vamos colocar no mesmo patamar os advogados criminais que se serviram do sistema Moro de corrupção? Quem eram os defensores indicados pela quadrilha dos procuradores? Quem se dispunha a ser cúmplice? Quem aceitava o jogo de um juiz parcial e corruptor do Estado democrático de direito? Quem vendeu a carteira da OAB e humilhou a classe? Quem ofendeu nossa independência e nossa dignidade? Quem são esses que se apresentaram como répteis para diminuir a advocacia? Em nome de quem se manifestaram?

A OAB é muito maior do que eles ou é conivente? Coautores da pior fase recente da história criminal. Haveremos de estar juntos com um látego para enfrentar esses traidores quando a verdade se impuser ou teremos o olhar complacente da história?

Não há duas faces para o enfrentamento democrático. Estaremos no mesmo espaço e, em nome da ordem democrática, os que mercadejam com a carteira da OAB serão desmascarados ou a história há de cobrar o silêncio cúmplice.

Certas reflexões se impõem. O advogado que acompanha um delator e que sabe da narrativa mentirosa – este o ponto, – contribuindo para acusar alguém sem prova, é cúmplice de uma série de crimes. Comete não só denunciação caluniosa como também crime contra a administração da Justiça. No Direito brasileiro, o cidadão não é obrigado a se auto incriminar, mas tampouco pode mentir acusando falsamente alguém. Há uma diferença abissal. O silêncio e a negativa fazem parte do direito constitucional da ampla defesa, mas nunca existiu o direito de acusar falsamente alguém para se livrar da incriminação. E o advogado tem responsabilidade pelo que ocorre. Não se passa a história a limpo sem o enfrentamento da realidade.

Há tempos a advocacia criminal sabia que algumas pessoas eram escolhidas para serem delatadas. Mas sempre foi difícil provar. Tudo era parte de um projeto político do grupo que instrumentalizou uma fração do Ministério Público e do Judiciário. Hoje, e cada vez mais, o esgoto está colocando os dejetos a céu aberto.

Olhávamos, perplexos, as distorções na prática das colaborações e o verdadeiro mercado que se estabeleceu. Delatores que, no momento de desespero, em busca da liberdade, serviram a um projeto político de um bando sem escrúpulos. Esses delatores, eventualmente presos de forma injusta, exatamente para delatar, ainda tinham uma desculpa para se renderem ao desespero.

O que ocorreu, muitas vezes, foi uma tortura institucionalizada: a prisão ilegal, a exposição midiática, a humilhação perante a família e a sociedade, o sufocamento financeiro mesmo para despesas de subsistência e a pressão desumana, tudo isso fez com que pessoas corretas cedessem ao jogo macabro dos que usurparam os direitos individuais. E é possível até entender a postura de sobrevivência de vários delatores. Sob tortura, não se reconhece, muitas vezes, a ação das pessoas. Mas os advogados não; eles não têm o direito de tergiversar em benefícios dos algozes e, assim, contribuir para o massacre dos seus clientes e, no que é mais grave, para acusar falsamente outras pessoas.

Mas, e o advogado que foi cúmplice dessa armação? Aquele que emprestou o prestígio da classe para dar ares de pretensa legalidade e legitimidade a atos claramente inconstitucionais? Ora, é o advogado do sentenciado à morte atuando em favor dos interesses do carrasco. Esses devem estar no banco da história ao lado dos juízes e membros do Ministério Público que destroçaram o instituto da delação premiada, que subverterem o sistema de justiça com falsas acusações e provas forjadas. Seria importante que algum dos colaboradores viesse agora a público e fizesse uma delação passando a limpo toda essa trama criminosa e abjeta. Uma delação espontânea e verdadeira, que faria justiça a muitos que sofreram nas noites eternas das acusações injustas. E quem tiver essa coragem, a história irá absolver.

Relembrando o velho Leão de Formosa, no poema O Búzio e a Pérola:

“Aperfeiçoa-te
na arte de escutar:
só quem ouviu o rio
pode ouvir o mar.”

 

Publicação Original: O Dia

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