A POESIA VENCEU A MORTE

“Ser poeta não é uma ambição minha. É a minha maneira de estar sozinho.”
Pessoa, na pessoa de Alberto Caeiro

Quando comecei a vir a Lisboa, Portugal era um país rural. Andando pelo interior,
impressionava certa simplicidade nos costumes. Tradicionalmente um povo de
pensamento cartesiano, era uma diversão conversar com as pessoas. Mas, claro, aqui
e acolá, a gente sentia que aqui não é a terra de Pessoa por acaso. Era sempre possível
encontrar um de seus heterônimos pelas vielas entre um copo e um queijo. Esse certo
desprendimento, que encantava, quase deixou de existir depois que o país, após a
entrada na Comunidade Europeia, virou uma potência turística e, com isso, o português
deixou de dizer “vamos à Europa”, quando viajava para Paris. Hoje, a Europa passa por
aqui. É aqui.

Lembro-me que, há muito tempo, viemos participar de um seminário e pude perceber
de perto a alma portuguesa. Já era assim muito antes do “Gilmarpalooza”, um monte de
ministros e autoridades nos restaurantes e fados e, vez ou outra, uma palestra e um
debate. No último dia, fomos a um bar incrível: Alcântara Café. Entre um porto e um
copo de vinho alentejano, destacava-se a tristeza de uma portuguesa sentada no
balcão. De uma beleza intrigante e um ar de profundo desalento.

Eu observei que 2 ou 3 amigos se animaram a tentar conversar e conheceram o solene desprezo português.
Um ministro amigo me disse: “Kakay, você tem que ir lá e falar com ela”. Eu respondi
que era impossível depois dela ter recusado na frente de todos. Mas resolvi mandar pelo
garçom, reservadamente, um bilhete. Um poema da grande Florbela Espanca.

A menina leu o poema dessa poeta da tristeza e que canta o desespero nos seus versos
e levantou levemente o olhar perguntando quem havia mandado o bilhete. Eu fiz um
gesto e ela, mandona, chamou-me ao balcão. Timidamente, aproximei-me e ela
perguntou: “Por que Florbela?”; eu disse: “pela tristeza dela”. Da poeta e da menina. Ela
me convidou para um copo e me disse olhando doce e profundamente: “
vou mesuicidar”.

Parecia uma sentença de morte. Ela apenas me comunicou que iria se matar.
Eu só podia recitar uma poesia e tomar um vinho. Nós nos sentamos na calçada e meus
amigos foram saindo, um a um, enquanto o sol se atrevia a afastar a noite. Meu voo era
às 8 da manhã. As 5, disse à menina que não poderia aguardar a morte dela, pois tinha
que pegar o avião. Ela riu pela primeira vez, com jeito de quem não queria morrer. E eu
disse a ela que poderia perder o avião se ela adiasse a morte.

Mas teríamos que ir, assim de repente, para Óbidos, a vila mais charmosa de Portugal. Por 2 dias. Sem ligar
para ninguém e só falar de poesia. Ela topou na hora. E a poesia venceu a morte. Dois
dias em Óbidos e ninguém falou mais em morrer. Salvo nos poemas tristes que sempre
nos acompanham em terras portuguesas. Anos depois, vi pela imprensa ela tomando
posse em um cargo superimportante. Parecia bem viva.

Recentemente, voltei a Óbidos para participar de um festival literário do mágico das
amizades, Afonso Borges. Fui recitar poesia em uma igreja que foi dessacralizada em
2013 para virar uma livraria. Meu querido amigo Zé Pinho tinha aberto mais de 10
livrarias numa vila mínima. Livrarias em espaços municipais, museus, galerias e
mercados. Livros pelas pousadas, na mercearia e nos bares. Em cada canto, uma
pequena livraria. Zé Pinho fez acontecer e, em 2015, a Unesco classificou Óbidos como
uma Cidade Criativa da Literatura. Uma Vila Literária. É o espírito dos poetas
portugueses que habita em cada um de nós que se permite ser, um pouco, poeta e
sonhador.

Sempre nos lembrando do nosso Mário Quintana, no poema Emergência: “Quem faz
um poema abre uma janela. Respira, tu que estás numa cela abafada, esse ar que entra
por ela. Por isso é que os poemas têm ritmo – para que possas profundamente respirar.
Quem faz um poema salva um afogado”.

Antônio Carlos de Almeida Castro, Kakay

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