Cicatrizes na alma

“Arre, estou farto de semideus. Onde é que há homens no mundo.”

Fernando Pessoa

 

 

A chacina do Rio de Janeiro, com o assassinato de 121 pessoas – mais de 40 delas sem nenhuma anotação criminal, inclusive, um adolescente de 14 anos -, leva a uma série de reflexões sobre a sociedade na qual vivemos. E sobre a nefasta influência que o fascismo pode exercer nela.

 

Durante os 4 anos do governo de ultradireita do Bolsonaro, todos os critérios éticos foram sendo abandonados ao longo do caminho. O exemplo que a cúpula do governo dava, diariamente, era que o correto, o que fazia sucesso e o que deveria ser a regra, era ser racista, misógino, desrespeitador das normas de proteção à natureza, apoiador de políticas contrárias aos direitos humanos, incentivador das armas e apologista da tortura. Uma sociedade doente, em que, como diria Rui Barbosa, o homem tinha vergonha de ser honesto.

 

Foi muito comum, durante a pandemia – tratada de maneira covarde, cruel e criminosa pelo governo bolsonarista -, as pessoas se distanciarem de familiares e de amigos em função de posturas teratológicas adotadas pelos aficionados a uma cultura negacionista e desumana. O exemplo que vinha do líder da extrema direita era avassalador para algumas pessoas em fase de construção de caráter e de formação humanitária. O desdém com o sofrimento, com a falta de ar dos acometidos pelo vírus e sem acesso ao oxigênio e com a dor dos familiares das vítimas, além do deboche com a morte.

 

Enfim, um horror que era a linha adotada pelos que deveriam fazer um enfrentamento técnico e científico. É claro que toda essa banalização da miséria humana, do desleixo com a empatia e do desprezo à solidariedade só poderia deixar marcas profundas naqueles que apoiaram a barbárie. Ninguém chafurda na lama moral e ética sem sair com cicatrizes na alma. E essas cicatrizes afloram ao longo da vida.

 

A chacina no Rio de Janeiro é a prova dessas marcas que o obscurantismo produziu. Pode-se dizer que dois foram os escândalos que afloraram da tragédia criminosa. Ou pelo menos dois. Um foi o massacre em si. A morte de 121 pessoas, sendo grande parte absolutamente inocentes e sem sequer serem investigadas. Brasileiros cujos crimes eram serem pretos e morarem numa comunidade. Outros eram procurados pela polícia e não tiveram direito ao devido processo legal, à ampla defesa e à presunção de inocência. Disseram que alguns estavam armados, mas o local do crime não foi preservado. Não há como afirmar, com segurança mínima, que tal fuzil apreendido estava na posse de fulano ou beltrano.

 

A operação toda foi a negação do Estado democrático de direito. Mesmo as perícias nos corpos, que eram o que restava com a destruição das provas no local do crime, foram feitas sem o devido cuidado técnico. Um absurdo sob o ponto de vista do processo penal democrático.

 

O outro escândalo, quase tão forte quanto a chacina, é a maneira com que boa parte da sociedade está reagindo à trama criminosa. Os homens “de bem” estão se sentindo vingados e seguros. O apoio ao extermínio, inclusive com tiros na nuca, facadas, corpos decepados, é manifestado com orgulho e contundência.

 

As mensagens de apoio aos assassinatos na chacina se confundem com as mensagens de apoio aos fascistas que desprezavam as 700 mil mortes na pandemia. Há uma enorme semelhança entre parte dos apoiadores das tragédias. É como se um processo de desumanização estivesse arraigado no meio de todos. Quando se perdem os critérios éticos e humanistas, a sociedade parte para um vale-tudo. O exemplo do líder fascista gritando: “não sou coveiro!” ecoa forte e com consequências preocupantes.

 

E não é “apenas” o não repúdio e o não apoio que chocam. É muito mais. É o engajamento no horror. É a solidariedade obtusa às arbitrariedades e aos crimes. O responsável maior pela operação, o governador do Estado Cláudio Castro, subiu 10 pontos na primeira pesquisa após a chacina. E no primeiro dia ganhou 1 milhão de seguidores nas redes sociais. Voltou ao jogo político. É a certeza de que outras operações sangrentas virão, outras mortes e outros assassinatos. É a comprovação óbvia de que a operação teve cunho eleitoreiro. Uma sociedade adormecida, cega e ávida por violência. É, infelizmente, o medo de estarmos perdendo a hipótese de podermos viver numa sociedade mais humana, minimamente igual e justa.

 

 

Tudo nos remete a Augusto do Anjos: “O homem que nesta terra miserável mora entre as feras, sente inevitável necessidade de também ser fera”.

 

Antônio Carlos de Almeida Castro, Kakay

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