Diga ao povo: ele sai!

“Quem foi temperar o choro e acabou salgando o pranto?”

Ariano Suassuna, ao recitar o poeta Leandro Gomes de Barros

 

Depois de um bom tempo sem poder entrar na Europa, como um pária internacional, cheguei a Lisboa. Uma festa surpresa em minha homenagem com cerca de 20 músicos, fadistas, violeiros e cantores, acolheu-me, e o nascer do dia com o Tejo aos pés, em meio à cantoria, deu a sensação de que a vida está tentando voltar ao normal. Durante o evento, por diversas vezes, questionaram-me: o que está acontecendo com o Brasil? Como se fosse possível responder a essa questão. Entre perplexo e desolado, falei que não há explicação para o que estamos vivendo. E senti nos olhos amigos uma solidariedade e certa preocupação. Triste não ter resposta.

Durante a curta estadia em Portugal, pude observar a constante perplexidade das pessoas com o nosso grave momento. Desde o motorista que me atende há anos, que faltou me dar os pêsames, até o atendente da livraria Ler Devagar, que foi compassivo ao demonstrar a tristeza pelo nosso constrangimento. Em todos os lugares pelos quais passei, uma discreta manifestação de solidariedade sempre esteve presente. A pergunta que não foi respondida é a que eu também me faço: o que aconteceu conosco? Em que momento nos perdemos? Onde se escondiam esses brasileiros que agora ostentam com orgulho a face fascista?

Como convivemos tanto tempo com essa gente estranha sem nos darmos conta de que ao nosso lado existia um outro Brasil? Um povo que cultua a morte e que não demonstra nenhuma empatia com a dor do outro. Que tem orgulho de ser racista e, suprema ironia, bajula a violência mesmo sabendo que ela se voltará contra todos.

Não há como pregar o retorno da ditadura em nome da democracia. Querem a liberdade de mentir, o direito de suprimir o direito e a barbárie como método. E eles são muitos, milhões. Bando de incultos ridículos a entoar um cântico desafinado de apoio a um presidente completamente sem condições de sequer raciocinar com algum sentido lógico. Uma pessoa claramente com sinais de descontrole emocional, acuada por ver desabar sobre sua família toda a sorte de risco acumulado depois de tanto tempo de ataque à coisa pública.

É um grupo que envergonha o país aos olhos do mundo, com seus preconceitos guardados em armários que teimavam em manter fechados. E, por essa insegurança, destilam mágoas reunidas por anos em um mundo no qual o obscurantismo e a violência são a regra. Como chegamos a esse ponto?

As notícias que chegam do Brasil dão conta de um grande movimento popular de apoio a Bolsonaro, que estimula abertamente o golpe e que tenta desestabilizar as instituições. Isso num dia em que se deveria comemorar a Independência do Brasil. O alvo preferencial dos ataques é o Supremo Tribunal Federal, certamente por esse grupo saber que, de lá, há de vir o tão esperado acerto de contas. O próprio presidente se presta a provocar o presidente do Supremo, exigindo uma atitude da Corte contra o ministro Alexandre de Moraes. Um acinte! O medo da prisão de alguns familiares faz o presidente perder a noção do ridículo. Como sempre escrevi, quem não sabe o que é ser ridículo não tem noção do que faz. Tristes e estranhos tempos.

O país não pode mais simplesmente tolerar essa irracionalidade criminosa e abjeta. Passou da hora de dar um basta. A postura golpista do presidente da República em plena comemoração do 7 de setembro não pode ser vista, mais uma vez, como um blefe irresponsável de um idiota. Ele tem que honrar o cargo que ocupa. E o fato de ser um imbecil não o torna inimputável. É um desprezo abissal aos poderes constituídos. A resposta tem que ser política. A proposta impensada de convocar o Conselho da República nada mais é do que um artifício despropositado de um presidente despreparado, desesperado e isolado.

E a cada hora fica mais grave. A manifestação do presidente pregando desobediência a eventual ordem do ministro Alexandre de Moraes é um ato de insurreição que merece a pronta reação da Corte Suprema e do Congresso Nacional. E inclusive da sociedade. Mesmo a insensatez e a bazofia têm que ter limites. Ou nós reagimos ou os bandidos vão posar de mocinhos. Nessa hora, a omissão, seja do Congresso Nacional ou do STF, há de ser interpretada como um apoio indireto ao golpe bolsonarista.

Há tempos venho propondo que cada um de nós deixe de conviver com os fascistas. Individualmente, com cortes secos nas relações pessoais. Sem permitir que eles frequentem o mesmo espaço que a gente. Agora, a hora é de exigir que também na política eles sejam segregados. Nós ainda temos uma chance de nos posicionarmos, já que o impeachment passou a ser uma pauta até mesmo da direita, que não quer vê-lo no segundo turno das eleições de 2022. E aí nós saberemos a resposta que eu não soube dar: se somos dignos ou não de dizer que fazemos parte do que ainda resta de humanidade nesse triste país. Depende de nós.

Como ensina a velha canção do Vandré – quem imaginou cantá-la de novo -:

“Vem, vamos embora que esperar não é saber. Quem sabe faz a hora não espera acontecer.”

Publicação Original: O Dia

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