Evidências, por Kakay
“Inútil pedir
Perdão
Dizer
Que o traz
No coração
O morto não ouve.”
Ferreira Gullar, O Morto e o Vivo
Inevitável não lembrar a famosa frase quando se deu a instalação da CPI: “CPI a gente sabe como começa e nunca sabe como acaba”. A experiência indica que isso é uma verdade.
São muitos os poderes de uma comissão. Imagine uma CPI no Senado Federal, conhecido como casa dos príncipes da República, com todos os poderes naturais do Poder Legislativo, imbuídos por determinação constitucional, com o acréscimo dos poderes de investigação inerentes ao Poder Judiciário. Pode ser letal. E precisamos levar em consideração o fermento adicional, que é a superexposição midiática. É a tempestade perfeita.
E essa comissão da covid tem um propósito muito especial: trata-se da apuração sobre um governo fascista e negacionista que terá que ser responsabilizado por, pelo menos, 150 mil mortes por omissão. E, certamente, ao longo da investigação, outros crimes virão à tona.
No tocante ao crime de homicídio, cabe à CPI definir, tecnicamente, quem deverá ser responsabilizado juridicamente com o chefe, o presidente da República. Que os crimes ocorreram já está sobejamente comprovado. O que se busca agora é a definição da limitação da coautoria. Lembro-me de Sophia de Mello Breyner, no poema Velório Rico:
“O morto está sinistro e amortalhado
Rodeado de herdeiros inquietos como sombras
Que atormentam o ar com seus pecados.”
Desde o início das investigações, todos nós ouvimos que essa é a Comissão Parlamentar de Inquérito mais importante da história do Congresso. Sem entrar no mérito, faço uma reflexão que julgo ser necessária e oportuna.
Todos percebem que a CPI está trabalhando bem e a mil por hora. As provas de diversos crimes se avolumam. E nem adianta ir negando as aparências ou disfarçando as evidências. Mas já está na hora de providenciar as imputações em um relatório bem circunstanciado.
As CPIs de sucesso tendem a ser prorrogadas e a exposição midiática é o termômetro e o limite. Ocorre que, até hoje, nenhuma comissão teve como pano de fundo principal tentar impedir a tragédia de quase 3.000 mortos por dia.
É disso que se trata. Neste momento, todos, ou pelo menos as pessoas sérias e humanistas, já têm a certeza científica de que o Bolsonaro tem que ser submetido a um processo de impeachment na Câmara dos Deputados e, também, a um processo criminal junto ao Supremo Tribunal. A discussão é quando. Singelamente, recorro-me a Geraldo Vandré:
“Vem, vamos embora, que esperar não é saber
Quem sabe faz a hora,
Não espera acontecer.”
É necessário que as provas dos crimes de responsabilidade e comuns sejam apresentadas de uma forma segura, robusta e técnica. Os senadores já lograram reunir os requisitos para o que seria o caminho natural: a responsabilização criminal e por crime de responsabilidade do presidente da República e seus asseclas. Agora, temos que perguntar o óbvio: se já estamos todos a saber dos crimes e quem os cometeu, o que é possível fazer e como? São essas respostas que o Brasil inteiro espera, com a urgência possível.
O anúncio de prorrogação do prazo da CPI é frustrante e preocupante. Não se trata de uma investigação sobre um banco ou sobre uma construtora, na qual até se compreende que a vaidade da exposição midiática tenha um peso na hora de decidir sobre a delonga. Estamos falando de uma CPI que pode efetivamente dar uma contribuição para a história, impedindo que a tragédia sanitária continue desgovernada.
Na prática, o governo já fez uma série de mudanças de rumo em função do que está sendo exposto com a investigação. E isso significa salvar vidas. Cada dia com o presidente da República no poder representa mais 3.000 brasileiros mortos. Já passamos de meio milhão de vidas ceifadas, boa parte com o carimbo oficial do governo Bolsonaro.
Torna-se imprescindível que o relatório, ainda que parcial, seja imediatamente apresentado, antes da prorrogação do prazo, fazendo constar as evidências técnicas para serem encaminhadas ao procurador-geral da República, que analisará eventual responsabilidade criminal e à Câmara dos Deputados, que cuidará da avaliação de prática ou não de crime de responsabilidade e do impeachment. Só seria possível prorrogar com o objetivo de aprofundamento das investigações se as pessoas parassem de morrer para esperar o resultado.
Ainda teremos um longo embate sobre os poderes imperiais do presidente da Câmara e do chefe do Ministério Público, que decidem sozinhos sobre o destino do relatório apresentado. É necessária uma mudança que permita que o plenário da Câmara se manifeste, bem como um grupo de subprocuradores no caso de omissão do PGR.
A hipótese de aprofundar a apuração das gravíssimas suspeitas de corrupção é evidente e deve ser levada em conta. E nem se diga, como defesa do presidente da República, que não é possível uma investigação dele pela CPI. Parece elementar que a Comissão não pode convocar o chefe do executivo, e há fundadas dúvidas sobre a constitucionalidade de decretar o afastamento de seus direitos fundamentais. Mas a investigação dos fatos pode seguramente se dar sem nenhum desrespeito aos direitos individuais do presidente.
A depender do andar da carruagem, basta atravessar a Praça dos Três Poderes e o Supremo Tribunal fará a parte dele. É sempre bom ler Miguel Torga, no poema “Denúncia”:
“Acuso-te, Destino!
A própria abelha as vezes se alimenta do mel que fabricou…
E eu leio o que escrevi
Como um notário o testamento alheio.”
A reflexão necessária nesse momento é que a prioridade absoluta é a de salvar vidas. A irresponsabilidade criminosa ao optar por não comprar vacina, a recusa deliberada de priorizar o oxigênio que asfixiou milhares de brasileiros, a pregação negacionista e a priorização de tratamentos sem indicação das autoridades médicas e da ciência, até a existência de um ministério paralelo, sabemos agora, tinham também um interesse financeiro e isso deve ser devidamente esclarecido. É a velha máxima do processo penal: siga o dinheiro. Mas é imperioso que esses desdobramentos se deem após a apresentação do relatório parcial. Infelizmente, o Brasil e os brasileiros não suportam esperar 2022.
Os Estados democráticos devem naturalmente conviver com a alternância de grupos distintos no poder. Essa é uma das essências da democracia. A renovação pelo voto é uma das principais fontes de fortalecimento do estado democrático de direito. Mas no caos para o qual o país foi tragado, não se pode ter a ilusão de simplesmente cumprir os ritos.
Há ao nosso lado, de maneira silenciosa, a presença de mais de 500 mil brasileiros esperando uma resposta. E não são apenas os que se foram, vencidos pelo vírus e pela irresponsabilidade criminosa do governo. Existem os milhares de sequelados que têm hoje sérias restrições bem como aqueles que se quedam sem esperança e sem disposição para o enfrentamento dessa tragédia que virou morar no Brasil. Os fascistas semearam o culto à morte e ainda sequestraram os sonhos de milhares de adolescentes. A resposta a tudo isso não pode ser prorrogada.
Remeto-me ao imortal Fernando Pessoa, no poema “Adiamento”:
“Depois de amanhã, sim, só depois de amanhã.
Levarei amanhã a pensar em depois de amanhã.
É assim será possível, mas hoje não…
Não hoje não, hoje não posso.
…
Amanhã é o dia dos planos
Amanhã sentar-me-ei à secretaria para conquistar o mundo,
Mas só conquistarei o mundo depois de amanhã…”
Publicação Original: Poder 360