Ilusão e solidariedade, por Kakay

“Feliz, feliz Natal, que nos traz de volta as ilusões da infância, recorda ao idoso os prazeres da juventude e transporta o viajante de volta à própria lareira e à tranquilidade de seu lar.”

Charles Dickens

 

O Natal, para mim, sempre foi uma data triste. Ainda menino, na minha pequena cidade de Minas, as lembranças que me acompanhavam eram de uma certa tristeza intrínseca entremeada de lampejos de alegria ao abrir os presentes. E tinha aquela festa no dia 25 ao ver, nas ruas, a meninada com suas alegrias infantis.

Uma doce recordação é o presépio que minha mãe fazia: um papel que imitava pedra, laguinhos com água de verdade e até peixes, ocupava toda a parede da sala. O ponto instigante era que cada criança podia colocar um pedaço de palha de milho na manjedoura, para tornar macio o berço de Cristo. Mas somente quando a criança fizesse uma “boa ação”. E não podíamos contar qual era a “boa ação”, pois não se deve ficar apregoando o que se faz de bem, me ensinaram. A simplicidade e profundidade de Manoel de Barros me acompanham:

“Não precisei ler São Paulo, Santo Agostinho, São Jerônimo, nem Tomás de Aquino, nem São Francisco de Assis, para chegar a Deus. Formigas me mostraram Ele.”

E a meninada levava a sério! Eu me lembro de tentar ser uma pessoa melhor para fazer daquele berço um local acolchoado para receber Jesus. No fundo, penso agora, eu acreditava que o Cristo precisava daquela boa ação, logo eu acreditava na existência Dele. De tudo essa é a memória mais terna que me resta do Natal. No mais é quase um soluço atravessado na garganta.

Aos poucos, a data foi ficando muito próxima de uma festa de encontro familiar onde a harmonia é a tônica. Já é muito. Quando a criança se vai e leva com ela a mística da estrela cadente, fica uma festa pagã, mas com rompantes de solidariedade e mensagens de esperança. Neste ano de isolamento e de guerra aberta entre o vírus e a ciência na corrida pela vacina, mais do que nunca o que deve predominar é a empatia. Acreditar, ainda que de maneira quase inocente, que a humanidade resiste entre nós.

Não é hora de terçar forças entre esquerda e direita, não é o momento das análises sobre o poder. A discussão é entre a barbárie e o humanismo. Nessa quadra da existência humana em que, a nós com consciência coletiva, nos foi negado o abraço, interditados o beijo e o aperto de mãos. Nos proibiram não o afeto, mas a possibilidade de ele ser extravasado, demonstrado com aqueles longos e densos contatos físicos. Vamos nos reinventar, já aprendemos a sorrir com os olhos e a abraçar à distância como se uma imagem projetada de nós depositasse no outro o nosso carinho. É bom ouvir meu querido amigo e poeta Boaventura Sousa Santos:

“Corri a cidade
à procura de um ouvido
não buscava um ouvido amigo que me ouvisse
mas um ouvido que me substituísse por uns segundos na escuta do mundo
queria saber como é estar no mundo
sem o ouvir.”

Não sei o que o mundo será depois dessa praga. Mas a reflexão sobre a vida que vivemos, a maneira que cada um se posiciona frente a dor do outro, pode levar a um fortalecimento da expectativa de que a imunidade contra o egoísmo, contra a maldade, contra o individualismo deve estar no DNA de cada vacina, seja ela qual for. A obtusidade que politizou o vírus é a mesma que colocou ideologia na discussão sobre a vacina. Que uma forte dose de humildade e humanismo seja inoculada junto com o remédio que pode nos curar esse flagelo.

No fundo o que nos move é a velha definição de “sentimento do mundo”. É a coragem de olhar dentro de nós mesmos e nos posicionarmos de maneira clara contra os abusos, os arbítrios, as desigualdades, a iniquidade. Saber como dói em cada peito, no íntimo de cada um, ver e conviver com a prepotência, a indiferença, a omissão é que nos dá a chance de separar quem tem em si o tal espírito natalino o ano todo ou quem veste a capa da hipocrisia na noite do dia 24 de dezembro. É possível separar quem coloca a palha do milho na manjedoura no escuro da noite de maneira silenciosa e sincera, ou quem o faz à luz do dia mais preocupado com a propagação do gesto do que com o acolhimento do menino Jesus.

Se a pessoa convive de maneira indiferente ou cúmplice com o excesso de punitivismo, com a aberração da pobreza explícita, com os desabrigados e com os moradores dos lixões, com o machismo, o ódio aos negros, a misoginia, com o culto à morte, com a apologia da tortura, com o descaso do degradante sistema carcerário, é melhor que essa pessoa retire o joelho do chão, em genuflexão de araque, não leve as mãos falsamente em sinal de prece e dispa-se do manto da hipocrisia. Não dá mais para suportar os cristãos que só se solidarizam na noite de Natal. Esses representam as verdadeiras chagas que deixam abertas as feridas e cicatrizes da desigualdade.

Vamos nos permitir, à feição de Dickens, que o Natal nos traga de volta a ilusão da infância. E que essa ilusão seja a força motora da capacidade de cada um no enfrentamento de todo tipo de barbárie. Seja o combustível contra o imobilismo e a placidez da omissão. Não a ilusão que nos tolhe, mas a libertária. Resistir todo o tempo e fazer dos 365 dias do ano um dia de Natal. No que ele representa de compaixão, de dedicação e respeito ao próximo, de solidariedade e resistência contra todo tipo de opressão. Isso pode fazer a diferença. Voltemos a Manuel Bandeira:

“Estou farto do lirismo comedido
do lirismo bem comportado
(…)
Do lirismo que capitula ao que quer que seja fora de si mesmo
De resto não é lirismo
(…)
Não quero mais saber do lirismo que não é libertação.”

Que a magia que a criança leva consigo e a faz olhar para o céu a procura de uma estrela nos acompanhe diariamente na tentativa de não esmorecer, de lutar o bom combate. Vamos deixar a ilusão nos trazer a esperança de dias melhores. Independentemente do que você acredita, a humanidade depende da coragem do enfrentamento. Que uma densa nuvem de solidariedade envolva a todos e que a gente dê um passo à frente na resistência aos desmandos, aos abusos. Um passo dado a cada dia, juntos, nos remete ao poeta Eduardo Galeano quando fala sobre utopia:

“A utopia está lá no horizonte. Me aproximo dois passos, ela se afasta dois passos. Caminho dez passos e o horizonte corre dez passos. Por mais que eu caminhe, jamais alcançarei. Para que, então, serve a utopia? Serve para isto: para que eu não deixe de caminhar.”

Publicação Original: Poder 360

Deixe um Comentário





Esse site utiliza o Akismet para reduzir spam. Aprenda como seus dados de comentários são processados.