Indiferença assassina, por Kakay

“Bates-me e ameaças-me
agora que levantei minha cabeça esclarecida e gritei:
“Basta!”

Condenas- me à escuridão eterna
agora que minha alma de África se iluminou e descobriu o ludibrio…
E gritei, mil vezes gritei:
“Basta!”

Vem com teu cassetete e tuas ameaças,
fecha-me com tuas grades e crucifixa- me, traz seus instrumentos de tortura e amputa- me os membros,
um a um…
Esvazia-me os olhos e condena-me a escuridão eterna…
que eu, mais do que nunca,
dos limos da alma,
me erguerei lúcida, bramindo contra tudo:
Basta! Basta! Basta!”
Noémia de Sousa – Sangue Negro

O que leva uma pessoa sentir-se melhor do que a outra? Por que é tão difícil priorizar o olhar de querer ver e conseguir ouvir sem eternos prejulgamentos os que estão a nos dizer algo diferente do que acreditamos? Insisto que a postura simplesmente cordata de não posicionar, de não questionar, de não promover o enfrentamento mesmo duro em situações em que há diferenças essenciais, onde há lesões aos direitos fundamentais, não servem para o fortalecimento de uma sociedade justa e igual. Não é disso que se trata.

Uma sociedade será mais madura quando a maioria souber se expor, se arriscar para garantir direitos de maneira coletiva. Repito que é necessário que rompamos o tal círculo invisível que nos aprisiona, nos limita, nos oprime. Romper a densa nuvem que nos sufoca o grito, que nos cala a voz, que nos tira a luz e nos cega. Falo do respeito a uma convivência fraterna, cuidadosa, sincera e solidária em sociedade, mas sem perder a capacidade de indignação.

Ao longo da vida procurei exercer a liberdade de olhar o diferente e tentar enxergar no outro aquilo que me reflete e me traduz. E respeitar. Foram muitos os enganos e as posturas equivocadas, das quais não me orgulho, mas que serviram para me posicionar dando um passo à frente. Mesmo quando foi necessário dar antes dois ou três para trás. Me recorro, como sempre, ao Livro do Desassossego do nosso Pessoa:

“Uma mão fria aperta-me a garganta e não me deixa respirar a vida. Tudo morre em mim, mesmo o saber que posso sonhar. De nenhum modo físico estou bem.Todas as maciezas em que me reclino têm arestas para a minha alma.Todos os olhares para onde olho estão tão escuros de lhes bater está luz empobrecida do dia para se morrer sem dor.

Tenho mais pena dos que sonham o provável, o legítimo e o próximo, do que dos que devaneiam sobre o longínquo e o estranho.”

Por respeito às mulheres, mesmo sem ser minha vontade, me vi solidário a antigas companheiras como expus no artigo “Eu fiz três abortos”, publicado na Folha em 15 de outubro de 2010. E, à época que publiquei e fui a público para tratar de um assunto tão delicado, me expondo, foi também em consideração às pessoas que estavam sendo manipuladas por uma propaganda enganosa covarde e hipócrita entre dois candidatos à presidência que eu respeitava.

Agora o país assiste estarrecido ao massacre cruel e abominável a um homem negro em uma grande rede de supermercado. E somos obrigados a ouvir um silêncio cúmplice e ensurdecedor de um Presidente da República e uma afirmação racista e desrespeitosa do Vice-Presidente no sentido de que não existe racismo no Brasil. A pergunta que antecede toda esta falsa perplexidade e essa dúvida insincera é: se fôssemos nós homens brancos e vestidos como “homens de bem” nós seríamos vigiados, seguidos e retirados do supermercado? Todos sabemos que não. É preciso ler Augusto dos Anjos:

“Quem foi que viu a minha Dor chorando?!
Saio. Minh’alma sai agoniada.
Andam monstros sombrios pela estrada
e pela estrada, entre estes monstros, ando!

Bati nas pedras dum tormento rude
E minha mágoa de hoje é tão intensa
Que penso que a Alegria é uma doença
E a tristeza é minha única saúde.

E eu luto contra a universal grandeza
Na mais terrível desesperação
É a luta, é o prélio enorme, é a rebelião
da criatura contra a natureza!”

No meio de tanta dor, perplexidade, raiva, sensação de impotência, ouvi de uma criança negra que a maneira com que olham para ela toda vez que vai a um shopping ou a uma loja é com olhar de desconfiança, de medo, de desprezo, e isso fez com que ela não tenha mais vontade de sair às ruas. São os racistas promovendo o apartheid, só que de maneira sorrateira e insidiosa. De forma canalha e abjeta. É a humanidade perdendo para uma barbárie silenciosa e sufocante. E o humanismo só ganha voz quando eclode um massacre. No dia a dia crescem o ódio e a discriminação. Só há resistência quando o racista sai da posição de violência com subterfúgio, escondida e se sente à vontade, protegido para barbarizar, para massacrar. A postura omissa da inspetora protegendo o patrimônio do patrão e apoiando a surra no negro Beto, filmando de maneira vil como que supervisionando a morte, me lembrou a dos carrascos que acompanham as execuções. Uma omissão cúmplice que encontra eco íntimo na perversidade generalizada.

Essa é uma grande parte da sociedade que se sentiu em casa e à vontade para arrotarem superioridade após o atual governo se jactar de ser misógino, racista, homofóbico. É necessário conhecer, divulgar e debater os dados da desigualdade racial. Mesmo com 56% das pessoas se declarando negros a desigualdade é gritante.

É ínfimo o percentual de negros na magistratura, na política, em posições de liderança no mercado de trabalho. O percentual de negros só é maior entre as vítimas de homicídios, nas estatísticas de desemprego ou subempregos, na população carcerária. A chance de um jovem negro ser vítima de homicídio no Brasil é quase 3 vezes maior do que a de um jovem branco. Em 2019 a estatística mostra que 74,5% dos assassinatos em operações policiais eram de pessoas negras e 61% dos feminicídios eram de mulheres negras. A cor da pele define a expectativa de vida no Brasil.

Essa desigualdade é o muro que nos divide. Um muro tão real que não é mais invisível, é palpável. O fosso medieval que mantém a lucidez fora dos castelos com seus bizarros habitantes é um buraco feito para enterrar qualquer chance de dignidade e de humanismo. E o que nos cabe é o exercício permanente de resistência. Querem nos enterrar vivos e junto conosco sepultar qualquer esperança de um mundo mais solidário. Mal sabem eles que somos movidos à indignação e raiva. E que os abusos perpetrados nos unem e comovem. Eles não conhecem Mia Couto:

“Preciso ser um outro
para ser eu mesmo
Sou grão de rocha
sou o vento que a desgasta.
Sou pólen sem insecto.
Sou areia sustentando
O sexo das árvores.
Existo onde me desconheço
aguardando pelo meu passado
ansiando a esperança do futuro
No mundo que combato morro
No mundo por que luto
nasço.”

Publicação Original: Poder 360

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