LEGADO DOS GOLPISTAS: HUMANIZAÇÃO DO SISTEMA CARCERÁRIO

A vida dá, nega e tira.”

Trasíbulo Ferraz

 

Logo após o 8 de janeiro de 2023, o dia da infâmia, estávamos todos perplexos com a ousadia dos golpistas que haviam depredado as sedes dos Três Poderes. Por ser advogado e atuar no Supremo Tribunal desde 1977, ainda estagiário, a invasão da Suprema Corte me doía muito. As cenas de vandalismo covarde e explícito me acompanhavam todo o tempo. Lembro que, na noite do dia 9, eu estava em Trancoso quando o Presidente Lula visitou o Plenário do STF acompanhado de governadores, parlamentares e alguns ministros de Estado e do Supremo Tribunal. Um dia após a ocupação criminosa, o grupo saiu do Palácio da Alvorada e cruzou, andando, a Praça dos Três Poderes. Foi uma visita com grande significado político e que marcou um momento de resistência democrática. Ali ficou explicitado que nós resistiríamos. Todos nós democratas. Cada um no seu papel. Naquela noite, falei ao telefone com um ministro que estava dentro do Plenário destruído. Choramos.

 

No dia 11, recebo um telefonema de um parente distante que mora na minha cidade natal, Patos de Minas. Cumprimentou com seu jeito mineiro:

 

– Bão, sô?

– Bão dimais! – respondi

– Você se lembra da fulaninha?

– Claro! – lembrei que era uma prima distante, reacionária e bolsonarista.

– Você não acredita: ela é idosa e está presa!

– Uai, ela foi presa num asilo sendo idosa? – fiz de desentendido.

– Não sô, ela foi presa dentro do Palácio do Planalto. E tá uma dificuldade pois na Papuda a fila do banheiro é enorme. A quentinha é azeda, incomível. Não tem cama para todo mundo. Tem que fazer inspeção íntima para entrar. Cheio de baratas. Um horror o presídio.

 

Mal acreditei. Perguntei a ele: “Mas não eram vocês que me criticavam quando eu defendia melhores condições carcerárias? Quando eu me insurgia contra os abusos do amaldiçoado sistema penitenciário?”.

 

Naquele momento, pensei que a crise aguda da tentativa de golpe de Estado, se bem enfrentada de maneira que levasse à cadeia os golpistas, poderia dar uma mexida importante no país. A extrema-direita sempre foi cruel, desumana e atrasada. Defende a tortura, as penas mais altas possíveis, o fim de qualquer direito dos presos, é contra a progressão de regime e favorável ao aumento indiscriminado de tipos penais – com o velho discurso de que bandido bom é bandido morto e que os presidiários devem mesmo viver em condições sub-humanas. Bolsonaro, seus familiares e asseclas defendem toda essa barbárie com bastante ênfase.

 

Quando ajuizei a ação direta de constitucionalidade 43, para rediscutir a prisão obrigatória após a condenação em segunda instância, o foco era a situação medieval dos quase 800 mil presos no Brasil, a imensa maioria sem culpa formada. O Lula foi solto quando ganhamos no plenário do Supremo Tribunal, mas o objetivo principal era o indefensável sistema carcerário. Foi a miséria humana que fez com que o Supremo Tribunal reconhecesse, nos presídios brasileiros, o estado de coisas inconstitucional. Um julgamento histórico, mas que, na prática, não trouxe absolutamente nenhuma mudança. A desgraça e a barbárie foram incorporadas ao dia a dia.

 

Agora, com o julgamento e a condenação, pelo Supremo Tribunal Federal, dos fascistas golpistas do núcleo crucial – Bolsonaro, generais, almirante e ex-ministros, a cúpula da organização criminosa -, o país passa por uma situação delicada. O ex-presidente foi condenado a 27 anos e 3 meses de cadeia. Assim que transitar em julgado, ele perderá a patente e será recolhido à Papuda. Os asseclas militares logo estarão cumprindo pena definitiva em penitenciárias. Esse é um fato que impactou profundamente certos grupos extremistas da ultradireita. E, é normal, houve uma forte reação por parte dos órfãos da extrema direita.

 

Parte do Congresso Nacional passou a apresentar propostas, algumas teratológicas, na ânsia de salvar os líderes bolsonaristas do cárcere. Desde uma tentativa espírita de anistia para quem sequer foi ainda condenado definitivamente, até uma esdrúxula hipótese de interferência do Parlamento no Supremo Tribunal Federal com a mudança, no caso concreto, julgado dentro dos parâmetros constitucionais, de penas impostas pelo Poder Judiciário. O leque de aberrações jurídicas foi amplo. Mas, como eu previra, os golpistas, os fascistas, a extrema direita, a direita, a famosa Faria Lima, a grande mídia, todos se uniram para pequenos e poderosos golpes contra a Constituição e contra a normalidade democrática.

 

Penso que nós, humanistas, temos uma chance rara. É hora de discutir no Brasil muitas pautas que nunca conseguimos emplacar. Agora, com o apoio luxuoso do oportunismo da direita, nós podemos fazer o enfrentamento do flagelo do maldito sistema penitenciário.

 

A começar pela exigência do cumprimento da Lei de Execução Penal, que estabelece as regras para cumprimento de penas. Em tese, o que se busca é a ressocialização do condenado e a harmônica reintegração social. O preso deve ter garantido assistência médica, jurídica, religiosa e educacional. A lei prevê progressão de regime de cumprimento de pena, garante o trabalho e a educação como ferramenta de ressocialização. A assistência material ao preso e ao internado consistirá em alimentação adequada, vestuário e instalações higiênicas. Garantirá atendimento médico, farmacêutico e odontológico. O atendimento médico à mulher inclui pré-natal, pós-parto e é extensivo ao recém-nascido. Não poderá haver superlotação e será garantida a salubridade do ambiente com a concorrência dos fatores de aeração, insolação e condicionamento térmico adequado.  As celas devem ser individuais com dormitório, aparelho sanitário e lavatório. Cada preso terá direito a uma cela de, no mínimo, 6 metros quadrados. Esses são alguns dos direitos básicos.

 

Mas, aproveitando a onda humanitária da extrema direita, deveremos debater, ouvindo os especialistas, em audiências públicas, a necessidade de diminuir praticamente todas as penas previstas pelos mais diversos crimes. Nada de reduzir a punição de quem atentou contra o Estado democrático de direito e manter a penalidade alta para quem roubou um litro de leite.

 

Por sinal, é hora de discutir a retirada de inúmeros tipos penais e focar em mutirões que possam abrandar a população carcerária de 900 mil presos para o mínimo absolutamente necessário. É bom ressaltar que somos a terceira maior população carcerária do mundo e que 70% dela é composta de pessoas negras. Desses, mais de 200 mil são presos provisórios. Esse pode ser um grande avanço com o apoio da extrema direita e da esquerda punitiva.

 

Se tiver alguma chance de isso acontecer, os golpistas terão conseguido fazer o que décadas de humanismo não conseguiram. A tentativa de golpe vai deixar um legado que nem os próprios golpistas imaginaram. Pouco importa. A humanidade agradece.

 

Lembrando-nos de Miguel Torga:

 

Recomeça… se puderes, sem angústia e sem pressa e os passos que deres, nesse caminho duro do futuro, dá-os em liberdade, enquanto não alcances no descanses, de nenhum fruto queiras só metade.”

 

Antônio Carlos de Almeida Castro, Kakay

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