Poesia: meu sossego e meu desassossego, por Kakay

“Ser poeta não é uma minha ambição, é a minha maneira de estar sozinho.”

Fernando Pessoa

 

Estava terminando os tradicionais agradecimentos que fazemos às pessoas que amamos e que, de alguma maneira, contribuíram para um livro que vai ser publicado, quando fui instigado: “você não agradeceu à Poesia.” Reconheço que imediatamente me senti em falta com essa companheira da vida toda. E, comovido, fiz uma singela lembrança da poesia na abertura do livro.

No meio de tanta dor, da pandemia, da diária e eterna luta contra o fascismo, dos incansáveis embates pelos direitos e garantias fundamentais, pela minha vida, enfim, que se resume e se define em um ato de resistência, é muito bom respirar e fazer o registro da base que sustenta alguma possibilidade de lucidez em meio ao caos. E a poesia está lá, em cada momento de solidão, de angústia, mas também, e muito, de libertação e de alegria.

Quando fiz 50 anos, numa época em que ainda era permitido ser feliz, reuni centenas de amigos numa festa memorável. A poesia era o mote. O Museu da Língua Portuguesa me inspirou em vários atos nos quais poemas eram projetados em sopros nas paredes de uma tenda armada como um circo. O convite era um livro com poesias que foram escolhidas por serem minhas amigas de meio centenário de noitadas, de serestas, de saraus e de vida, enfim. Esse livro convite talvez seja, ele próprio, uma das maiores homenagens à poesia. É lindo, é poético.

Lembro-me que, à época, me dei de presente algo que me fez bem: contratei uma professora de literatura nas minhas Minas Gerais para fazer uma pesquisa nos sebos de Belo Horizonte. Ela encontrou 640 livros de poesia, dos quais me dei 500 de presente.

E ao definir, nesse convite, a poesia, registrei:

“A poesia é um dique para não transbordarmos,
uma pá para recolhermos os escombros,
um sonho para as noites em desvario,
um disfarce para sermos o fingidor,
um mote para distrair-nos do eterno,
ou simplesmente a companheira de todas as horas.”

E em todos os embates da vida, sigo fazendo da poesia minha companheira e confidente. Da sagrada Tribuna do Supremo Tribunal, socorri-me de Pessoa durante a sustentação oral na famosa ação penal do Mensalão, quando vi meus clientes Duda Mendonça e Zilmar serem absolvidos. Com ousadia respeitosa, declamei:

“Há sem dúvida quem deseje o impossível,
Há sem dúvida quem não queira nada –
Três tipos de idealistas, e eu nenhum deles:
Porque eu amo infinitamente o finito,
Porque eu desejo impossivelmente o possível,
Porque eu quero tudo, ou um pouco mais, se puder ser, ou até se não puder ser…”

Assim tem sido minha relação com a poesia, desde que, menino ainda, me encantava com a magia dos versos libertários de Leão de Formosa, que eu recitava nas madrugadas de Patos de Minas, como o poema Erótica Menor Entre Nuvens:

“Existe nua
Aristofânica
Lisistrata divina
Beijo teu lábio menor
Beijo teu lábio maior
Beijo teu delta
Depilado a lamparina.”

O mesmo poeta do qual aproveitei do seu ineditismo para recitar, como meus, inúmeros poemas nas noites de boemia do grande bar Beirute. Tudo, claro, com a cumplicidade poética do autor, que me incentivava e me abastecia de versos inéditos. E, assim, fui poeta por algumas horas, noites a fio. Quantas dezenas de vezes recitei “Sonetilha Existencial” como se fosse um verso improvisado, feito ali na hora depois de alguns goles! Logo esse poema, que é uma dádiva divina:

“O homem lúcido me espanta
mas gosto dele na lírica.
A verdade metafísica
modela o verbo e a garganta.
O homem lúcido verifica
que a existência não se estanca
põe a baba ao pé da planta
eis que a planta frutifica.
O homem lúcido como quer,
seja lá onde estiver
ele está, sem aquarela.
Sabe que a vida é viscosa
sabe que entre a náusea e a rosa
foi que a ostra faz a pérola.”

Ainda na adolescência, veio Pessoa nas suas múltiplas pessoas. E eu me perdi e me encontrei. Em Caeiro, tive o grande companheiro de adolescência e entendi a força do guardador de rebanhos. Depois, fui mudando de Pessoas até conhecer o ajudante de guarda-livros na cidade de Lisboa, Bernardo Soares, no maior livro de todos os tempos, o Livro do Desassossego:

“A natureza é a diferença entre a alma e Deus.

Tudo quanto o homem expõe ou exprime é uma nota à margem de um texto apagado de todo. Mais ou menos, pelo sentido da nota, tiramos o sentido que havia de ser o do texto; mas fica sempre uma dúvida, e os sentidos possíveis são muitos.”

E aí vieram tantos outros que a vida virou uma poesia só. Descobri o Caeiro brasileiro, o matuto mato-grossense Manoel de Barros, que profetizou: “Há muitas maneiras sérias de não dizer nada, mas só a poesia é verdadeira.” Ou o moçambicano Mia Couto, que diz, poeticamente, que “não me basta ter um sonho. Eu quero ser um sonho.”

Enfim, foi a poesia que me amparou no momento trágico de isolamento da pandemia. Para resistir ao massacre da solidão, comecei a recitar poesias ao cair da tarde. Primeiro era só uma fuga para me permitir estar só com meus poetas. Depois, resolvi começar a enviar para alguns amigos e foi virando uma maneira lúdica de resistir. Aos poucos, foi se consolidando como uma ponte entre centenas de pessoas. Uma maneira de reapresentar o que disse Clarisse Lispector:

“Liberdade é pouco. O que eu desejo ainda não tem nome.”

Publicação Original: Poder 360

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