Política no fim do túnel
“O pior da peste não é que mata os corpos, mas desnuda as almas, e este espetáculo costuma ser horroroso.”
Alberto Camus, “A Peste.”
A derrota de Bolsonaro na votação sobre o voto impresso no plenário da Câmara comporta uma reflexão cautelosa sobre o momento brasileiro. O projeto é arcaico, reacionário e inexequível. É a cara das “Bias Kicis” do governo e, claro, a representação facial do Sr. Presidente: o homem morte.
Mas esse projeto, que, se fosse aprovado, inviabilizaria o país e aprofundaria o fosso entre o Judiciário e o Executivo, além de instalar o caos, foi finalmente derrotado pela política. Com a manifestação da Câmara dos Deputados, voltamos, de certa forma, a ter luz no fim do túnel. Cumpre olhar de frente essa luz. O Judiciário se posicionou firme na questão do voto impresso e o Congresso se viu obrigado a dar uma resposta.
O Brasil não melhorou um segundo sequer com essa votação. A compulsão do presidente da República, em relação aos crimes de responsabilidade, é a mesma e cada vez maior. E, concomitantemente, a responsabilidade criminal pelas suas ações e omissões se repetem a cada dia. Esse serial killer precisa ser contido. O que nos faz olhar com atenção redobrada é como contê-lo. Não no mundo ideal, dos nossos sonhos e desejos, mas com olhos voltados para a crua realidade, para a política.
O pior projeto possível, uma excrescência jurídica e política, uma PEC que deveria ser rejeitada quase à unanimidade, e ainda teve 229 votos favoráveis. Na realidade, a oposição teve menos votos, apenas 218. Só não passou porque, como era emenda à Constituição, precisava de 308 votos. Mas é importante levar em consideração que o projeto teve maioria dos votos a favor. Claro que poderemos argumentar que a abstenção votou com o Brasil. E essa é a reflexão que nos cabe fazer.
Tivessem o presidente da Câmara, o ministro da Casa Civil e mais alguns ministros políticos se empenhado ao máximo para aprovar o teratológico projeto, ele seria acatado. Claro que o Senado seria o dique para impedir tal extremismo, mas a vitória simples na Câmara já incendiaria o país. Falou mais alto a política.
Se passasse a PEC, a tática golpista do presidente encontraria uma narrativa dificílima de ser enfrentada. E os 229 votos no escatológico projeto nos inquieta sobre qual o espaço que existe hoje para a política feita com fanatismo, messianismo e sob o jugo de um governo sem escrúpulos e sem compromisso com o país.
De certa forma, o presidente, sua família e seu entorno fazem o papel que parte do Congresso tem se negado a fazer. A vexaminosa parada militar, que envergonhou as Forças Armadas e o povo brasileiro, fez com que 93 % dos posts nas redes sociais fossem de chacota. A pilhéria tem uma força corrosiva, até os bolsominions mais raiz sentiram o golpe.
Os cultores do golpismo vulgar e os provocadores da ruptura permanente do sistema merecem nosso desprezo. Claro que existe a hipótese real de sequer se sentirem desprezados. É como imaginar que eles se sentiriam ridículos. Ora, eles não têm a noção do ridículo. Temos que entender, com maturidade, que só nos resta a resistência diária e acolhedora. A luta permanente com humor, poesia e muita política. Com a cabeça na imortal Cecília Meirelles:
“A liberdade é uma palavra que o sonho humano alimenta, não há ninguém que a explique e ninguém que não a entenda.”
Publicação Original: O Dia