Respeitem o Supremo

“Conformar-se é submeter-se e vencer é conformar-se, ser vencido. Por isto toda a vitória é uma grosseria. Os vencedores perdem sempre todas as qualidades de desalento com o presente que os levaram à luta que lhes deu a vitória”.

Fernando Pessoa, no Livro do Desassossego

 

Há uma dificuldade real em entender o Brasil de hoje. O caso do Deputado Daniel Silveira deve ser estudado por quem quiser conhecer o nosso país. O parlamentar é um exemplo clássico do que é o bolsonarismo. Assim como o chefe, ele tem enorme orgulho de ser idiota, agressivo, vulgar, banal. O Bolsonaro se elegeu mostrando o ser vil que ele é. Não mentiu. Ao contrário, exaltou sua personalidade doentia e desumana. E se aprimorou depois de eleito. Chegou a simular, em uma live, em uma espécie de canal oficial da Presidência, uma pessoa com dificuldade de respirar, em plena crise de oxigênio em Manaus. Sim, é isso mesmo: o Presidente da República, responsável direto pela morte de, pelo menos, um terço dos 660 mil brasileiros na pandemia, ridicularizou a dor dos que faleciam por falta de ar. Brincou com tal aflição. Fez pouco caso dos familiares e amigos que sofriam com o desespero da ausência de ação do governo. E tudo isso faz parte de uma estratégia de comando.

 

Bolsonaro, Daniel, Damares e tantos outros cumprem um roteiro preestabelecido. Todo poder aos completamente sem escrúpulos. A maioria, infelizmente, aplaude essa escória que tem o despudor de assumir que são bárbaros. Essas pessoas têm orgulho de serem os legítimos representantes do racismo, dos que cultuam a tortura, a morte, a violência, o preconceito, o machismo, enfim….

 

A defesa técnica do Deputado não se esmerou em tentar encontrar uma tese que infirmasse os crimes que ele cometeu. O próprio parlamentar se jactou de ser quem ele é. Ser violento, pregar a morte dos Ministros do Supremo, investir contra o Poder Judiciário, propor o fechamento da Suprema Corte, exaltar a ditadura, fazer homenagens à tortura, tudo faz parte de um ideário bolsonarista. A estratégia é esticar o máximo a corda e tentar sentir quando é possível efetivar o golpe institucional. O esgarçamento tem um planejamento específico e determinado. Quando for viável, a ruptura será promovida.

 

Na prática, já vivenciamos o terror. Nós ainda não entendemos que o inferno já está instalado no Brasil. Lembra-me o grande poeta Boaventura de Souza Santos, no poema O nome não se deixa nomear:

“A comida que me dás

mata toda a minha fome

mas o que me falta não tem nome”.

 

O país, que tinha saído, em 2012, do mapa da ONU sobre a fome, voltou a tê-la como realidade para 15 milhões de brasileiros. Fome real. Pessoas que morrem diariamente por não ter o que comer. Não é uma tese de doutorado sobre distribuição de renda, é a dor de ver um filho pedindo para se alimentar. E isso no meio de uma população de milhões de desempregados e subempregados. Com uma inflação galopante e 116 milhões de brasileiros em situação de insegurança alimentar, ou seja, pessoas que não sabem se terão o alimento mínimo necessário ao final do dia. Mas, nas grandes cidades, é possível entender o refrão que elegeu o fascismo quando se pregava o “vem para as ruas”. O povo foi e está nas ruas. O contingente de pessoas que não tem residência hoje é assustador. É um Brasil inteiro abandonado. Desabrigado. Sem esperança.

 

E a estratégia do governo Bolsonaro é exaltar a vilania para se manter no poder. A reeleição passou a ser o único projeto de governo. Talvez a certeza de que o Presidente e, principalmente, seus filhos serão responsabilizados criminalmente, caso percam a votação popular, fez com que qualquer escrúpulo fosse deixado de lado. É a luta insana não só pelo poder e dinheiro, mas também pela liberdade. O escancaramento dos métodos vis não causa a esse bando nenhum constrangimento. Antes, exaltam a barbárie.

 

É importante refletir sobre o que está acontecendo com o tal Daniel Silveira. O Deputado foi condenado à cadeia pelo Supremo Tribunal Federal que, ainda, determinou a perda do mandato parlamentar e a perda dos direitos políticos. Ou seja, a Corte Suprema, órgão máximo do Poder Judiciário, decidiu, em julgamento pelo plenário da Casa, que o parlamentar atentou contra os princípios republicanos, contra a segurança física dos Ministros do Supremo, contra a segurança jurídica e contra a ordem democrática. Ou seja, o Deputado usava uma pretensa imunidade material para colocar em risco a ordem institucional. Seguindo os passos do seu líder Bolsonaro, de maneira deliberada, o parlamentar pregava o referido rompimento institucional. O mais grave é que ele usava – e continua usando – a força simbólica do Parlamento e do voto popular para investir contra os princípios que sustentam a própria democracia. Um escárnio. Como se fosse possível um poder absoluto. Sem peias, sem controle. A negação expressa do que significa a República.

 

O Deputado, de maneira pensada e determinada, atentou contra a lei de Defesa do Estado Democrático de Direito. Ele o fez por opção, por entender que a ruptura institucional deve ser levada a cabo pela força da barbárie. Fez em nome do grupo que ele representa, buscando legitimar sua opção pela violência e pelos métodos fascistas. Simples assim.

 

O Ministério Público Federal, que, em regra, não enxerga crimes nas atitudes governistas, entendeu que a ordem institucional estava em risco e denunciou criminalmente o Deputado perante a Suprema Corte. O Judiciário, que é um Poder inerte, só age se provocado, cumpriu o rito constitucional. Julgou o Deputado e, em uma decisão técnica, coerente e quase óbvia, condenou-o.

 

Aí começa o outro show de horrores. O Presidente da República, utilizando de maneira enviesada o instituto do indulto individual, da graça constitucional, resolve afrontar o Judiciário e perdoa o seu comparsa. É necessário entender o que ocorreu para saber que houve uma clara e deliberada afronta à estabilidade e à harmonia entre os Poderes. Certamente essa é uma decisão com vista a um público específico, buscando a reeleição.

 

O decreto de indulto se deu antes do trânsito em julgado, ainda na ocorrência do julgamento no Supremo. Ou foi um ato sem nenhum apoio jurídico, ou foi, deliberadamente, uma afronta ao Poder Judiciário. A personalidade autoritária e autocrática do Presidente se confunde, nesse caso, com a conhecida mediocridade dos que o cercam. Mas há muito mais. Sempre me socorro na poesia de T.S. Eliot: “Mas onde o mundo de um tostão, para comer com ela atrás da tela? Os olhos rubros dos abutres espreitam lá da rua, da viela”.

 

Na fundamentação do decreto, o Presidente confronta a decisão do Supremo e faz um julgamento próprio do que ele entende ser o direito do Deputado! O Executivo resolveu incorporar as funções do Judiciário. Decidiu julgar e reformar a decisão plenária da Corte Superior, em evidente desvio de função.

 

É necessário frisar que o Chefe do Executivo tem sim o direito constitucional de conceder a graça. Embora não seja uma tradição brasileira, existe a previsão constitucional. No entanto, nenhum direito é absoluto e esse ato discricionário pode e deve ser submetido ao controle judiciário.

 

O que resta ao Supremo Tribunal é fazer cumprir a Constituição. O mais grave será a definição dos limites desse decreto, ou seja, analisar se um cidadão que praticou crimes contra a ordem democrática, que atentou contra as instituições, que afrontou os valores republicanos, que ameaçou as famílias e os Ministros do Supremo e que usou a força que emana do parlamento para tentar fechar um Poder da República pode ser indultado. Não existe uma vedação constitucional para esses crimes. Assim sendo, poder-se-ia cogitar que o Estado nada pode fazer para impedir que um golpe seja gestado dentro da normalidade democrática. Essa conclusão seria a própria negação dos princípios republicanos.

 

Penso não existir dúvida de que o Deputado já perdeu os direitos políticos com o julgamento, até pela aplicação dos efeitos da Ficha Limpa. O indulto não tem o poder de afastar os efeitos secundários da pena. Extingue a punibilidade, o que já é muito. Isso, claro, se a Suprema Corte não o afastar do mundo jurídico. E resta também ao plenário do Supremo decidir quem declara a perda do mandato parlamentar. O Judiciário já determinou que o Deputado perca o mandato, mas a execução dessa ordem, em homenagem à independência dos Poderes, deve se dar pelo plenário da Casa Legislativa. Já é hora de o país ter segurança jurídica e parar de viver nesse verdadeiro faroeste institucional que alimenta o submundo da política nefasta instituída pelo bolsonarismo. É como se nós todos estivéssemos com os olhos vendados, aprisionados em um círculo imaginário de giz, no meio de uma tempestade de areia em que a luz não superasse a densa cortina que nos imobiliza e que nos impede de respirar. A angústia da falta de ar pode vir também da escassez de lucidez democrática. Vamos respirar e vencer a barbárie.

 

O pior é que escuto até de gente lúcida que cabe agora ao Judiciário ser prudente, cauteloso e não acirrar a crise. Em outras palavras, ser omisso. Basta ver que, mesmo condenado pelo Supremo, o Deputado foi eleito agora membro da Comissão de Constituição e Justiça da Câmara. Um acinte. Não percebem essas pessoas que o golpe está em curso, só nos resta resistir, lembrando sempre de Guimarães Rosa:

“O correr da vida embrulha tudo. A vida é assim: esquenta e esfria, aperta e daí afrouxa, sossega e depois desinquieta. O que ela quer da gente é coragem”.

 

Antônio Carlos de Almeida Castro, Kakay

 

Publicado no Poder360

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