TEXTURA DO TEMPO

“Caminhante, não há caminho; faz-se caminho ao caminhar.” Do poeta espanhol Antônio Machado

 

 

Os cafés de Paris nos levam à contemplação. As cadeiras viradas para as ruas nos permitem simplesmente acompanhar a vida que passa. Quem pede um copo de vinho ou um café tem o direito de, por horas, pensar a vida e observar as pessoas que, sem se identificarem, fazem parte, ainda que por segundos, das nossas vidas.

 

Alguém passa triste, com um olhar perdido e, por um instante, nós temos a impulsão de acompanhar tanta tristeza. A tristeza tem um quê de profundamente instigante. Talvez tentar saber o porquê dessa aparente solidão. Afinal, a solidão costuma ser uma grande companhia.

 

Mas, em seguida, às vezes ao mesmo tempo, passa uma mulher tão linda e feliz, que seria melhor tentar entender essa alegria e, até atrevidamente, fazer parte dela. O mundo é sempre surpreendente e o próximo a passar é tão enigmático que causa um pouco de medo. Melhor nem tentar entender essas vidas que passam e que, embora nossas por lapsos de segundos, esvaem-se no compasso das multidões, que nem sei se quero decifrar.

 

Estar no Café de Flore e se permitir ver o tempo passar é uma maturidade que só esse mesmo tempo lhe permite. É uma paz danada não brigar com o tempo. Há certa inteligência neste não-embate, até porque seria fatalmente inútil. Saber da finitude da vida nos faz dedicarmos aos nossos sonhos e desejos com um pingo de racionalidade. Um pingo; se fosse um copo, talvez a vida ficasse modorrentamente chata e estranha. Por isso, a contemplação, sentado no Flore, faz de nós resilientes. Sempre lembrando de Clarice Lispector: “Não tenho tempo para mais nada, ser feliz me consome muito.”

 

É claro que o Café de Flore é uma figura explicitada de um canto de onde se pode observar a vida. Nada muda se for a cadeira na frente de uma casa, no interior de Minas Gerais, onde a vida passa com a mesma intensidade. Talvez mais devagar, mas com uma densidade que parece dar uma textura palpável ao tempo. É como se pudéssemos cortar fisicamente o ar que nos envolve.

 

Na verdade, o que nos instiga mais é que, aqui no Flore, em Paris, as pessoas que passam parecem que não têm nenhum rumo. Como não as conheço, posso imaginar o que quero do destino delas. Os seus caminhos, de uma maneira imaginária, sou eu que traço. Todas, as felizes, as tristes, as perplexas, as enigmáticas caminham sem nenhum compromisso com nada que eu deva conhecer.  E é aí que habita o inesperado. Como ninguém vai a lugar nenhum, sou eu quem posso imaginar o que quiser. Se não há caminhos, todas as hipóteses são possíveis. Lembrando de Padre Antônio Vieira: “A omissão é um pecado que se faz não fazendo, pois quem sabe que deve fazer o bem e não faz, nisso está pecando.”

 

Por isso, o olhar de cada um de nós, ao acompanhar o tempo, a vida, as pessoas é o que define esses rumos. É acompanhando esses passos indizíveis que construímos nossos sonhos. Na leitura de um livro, companheiro de alma. Na segurança de um copo de vinho, companheiro de observação. No simples escrito em um caderno rabiscado e anotações muitas vezes incompreensíveis. Na vida que se revela no detalhe.

 

O que nos move e nos imobiliza ao mesmo tempo é a sensação de que, embora não possamos mudar o rumo de quem passa, nós fazemos parte de cada passo dado e que os rumos do mundo dependem, sim, de nós. Do livro que nos faz companhia, dos passos dados até sentarmos aqui, das nossas aflições, dos nossos gritos, da nossa sofrência.

 

E nada é em vão! Cada pedaço de tristeza que se materializou foi fruto de um acompanhar que nos fez dar valor à tristeza. Cada segundo de alegria foi parte de uma conquista. Ninguém está no mundo por acaso. Nós temos uma responsabilidade real, palpável, para definir o que passa à nossa frente e principalmente qual rumo tomar. A omissão é parte ativa e cúmplice de um mundo que caminha sem rumo. Por isso mesmo, vamos juntos mudar os caminhos e o destino do país. Depende de nós. Vamos, em outubro, dizer sim à esperança e voltar prestigiar a visão civilizatória. E dizer não à barbárie. Sem medo de ser feliz.

 

Acreditando em Eduardo Galeano, que respondeu à pergunta “Para que serve a utopia”: “A utopia está lá no horizonte. Me aproximo dois passos ele se afasta dois passos. Caminho dez passos e o horizonte corre dez passos. Por mais que caminhe jamais o alcançarei. Para que serve a utopia? Serve para isso: para que não deixe de caminhar.”

 

Antônio Carlos de Almeida Castro, Kakay

Artigo publicado no Poder360. 

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