A ANATOMIA DE UM CRIME
“É um estranho desejo, desejar o poder e perder a liberdade.”
Francis Bacon
Como advogado criminal que gosta de acompanhar o cenário político, fiquei muito impressionado pelo fato de os 37 indiciados não estarem, na sua maioria, negando os fatos a eles imputados no relatório de 884 páginas apresentado pela Polícia Federal. Especialmente o ex-presidente Bolsonaro. O que temos visto é um grupo dividido, cada um acusando o outro. Sem afirmar que não cometeram os crimes ou com alegações de fundamentados jurídicos que são, no mínimo, estranhos.
Aproveitei minha volta de Londres, onde estava me filiando nas hostes do escritório inglês que representa os atingidos pela tragédia de Mariana contra as mineradoras, para dedicar um tempo ao trabalho da Polícia Federal. Realmente um resultado irretocável. De uma inteligência rara na opção pela estratégia de costurar os fatos da tentativa de golpe. Daí, certamente, a desorientação dos indiciados.
A trama foi sendo revelada de uma maneira muito consistente. Com uma prova técnica que impressiona. O relatório vai amarrando fatos de 2019 até os dias atuais. Alguns, se observados isoladamente, não serviriam para fundamentar crimes tão graves. A descrição da postura propositalmente golpista na formação de um ambiente de desconfiança contra as urnas, contra o Judiciário e contra os ministros do Supremo e do Tribunal Superior Eleitoral, assim como na manutenção posterior dos bolsonaristas à porta dos quartéis. Tudo comprovadamente demonstrado com um encadeamento que é impactante. À época, ousaram tentar a instrumentalização da PF, chegando a ter uma proposta para que todos os inquéritos de autoridades com foro no Supremo fossem presididos pelo Diretor-Geral da Policia Federal.
O entrelaçamento dos diversos depoimentos é demolidor contra o bando. Os documentos apreendidos, as mensagens de WhatsApp e uma primeira delação. Tudo realmente deixa evidente que o procurador-geral da República terá pouco trabalho para oferecer a denúncia. A conclusão está posta. E, pela construção do relatório e pela minha experiência, a acusação deveria vir enfrentando somente a tentativa de golpe. Sem misturar com os inquéritos da vacina ou das joias. Até para prestigiar o que foi produzido pela Polícia Federal.
O trabalho fez um apanhado de outras investigações – ou etapas desta investigação -para constatar a importância do general Freire Gomes, então comandante do Exército, que chegou a ameaçar o Presidente da República Bolsonaro de prisão, e da seriedade e compromisso com a Constituição por parte do tenente-brigadeiro, à época comandante da Aeronáutica, Baptista Júnior. Resistiram a todas as pressões.
É assustador ver o envolvimento das Forças Especiais no plano que chegou a ser iniciado para matar Lula, Alckmin e o ministro Alexandre. Há prova material da estratégia do golpe com o projeto de destituição de ministros do Judiciário e de inúmeras conduções coercitivas. Fica evidente que o alvo era Democracia e não o ministro Alexandre. Matá-lo era uma etapa do golpe. Falar que ele deve se dar por suspeito é desconhecer os fatos e o direito. É quase imoral.
E o relatório expõe a breguice dos bolsonaristas. Indigentes intelectuais que produzem textos ridículos com chamamento, chavões, gritando palavras de ordem infantilizadas e apelos religiosos. Há até uma intenção de pedir para os bolsomínions rezarem para 16 generais. É uma vergonha alheia generalizada.
Claro que ainda teremos um trabalho pela frente. Os militares de alto coturno relataram uma pressão forte de deputados para a instalação do regime de terror. Até agora não pude presenciar o aprofundamento da investigação específica sobre os políticos.
Mas penso que o que importa agora é apoiar o diagnóstico feito pela Polícia Federal e cobrar, dando o tempo necessário, o oferecimento da denúncia pelo procurador-geral da República. Até para que não ocorra de novo.
Na tristeza profunda do poeta Manuel Bandeira, no poema O Bicho:
“Vi ontem um bicho
na imundice do pátio
catando comida entre os detritos.
Quando achava alguma coisa,
Não examinava nem cheirava:
engolia com voracidade.
O bicho não era um cão,
não era um gato,
não era um rato.
O bicho, meu Deus, era um homem.”
Antônio Carlos de Almeida Castro, Kakay