A hora e a vez do Congresso, por Kakay

“O pasmo que me causa a minha capacidade para a angústia. Não sendo, de natureza, um metafísico, tenho passado dias de angústia aguda, física mesmo, com a indecisão dos problemas metafísicos …

Nenhum problema tem solução. Nenhum de nós desata o nó górdio; todos nós ou desistimos ou o cortamos. ”

Fernando Pessoa, O Livro do Desassossego

 

Poxa, outro artigo sobre impeachment! Até parece com as centenas de notas de apoio ou repúdio que proliferam nos grupos de WhatsApp para os mesmos leitores. É verdade, esse é um dos papéis que cabe ao cidadão numa sociedade democrática. Eu não tenho a chave dos cofres públicos para impressionar os congressistas e, se a tivesse, não usaria. Me resta a palavra, então escrevo. O que a advocacia me deu de mais precioso ao longo de 40 anos de profissão foi ter voz. E essa é a minha forma de resistir.

Há algum tempo, em virtude das dezenas de atos desairosos deste fascista que ocupa a Presidência da República, me pediram para escrever sobre a viabilidade de um processo de impeachment. Neguei-me a fazer um artigo nesse sentido. Entendo que não devemos e não podemos banalizar o instituto do impeachment. Defendo que, em uma democracia que se preze, a alternância de poder é saudável e só fortalece as instituições. Quem perde nas eleições se organiza e tenta, depois de 4 anos, ocupar novamente o poder pelo voto. Simples assim. Recorro sempre a Rainer Maria Rilke:

“Aceita tudo o que te acontece

o belo e o terrível.

É só andar.

Nenhum sentimento é estranho demais.

Não deixe que nos separem.

Perto está a terra que chamam de vida.

Tu a reconhecerás pela sua gravidade.

Dá-me a mão. ”

Mesmo sabendo de todas as barbáries praticadas por esse genocida e seu grupo, eu ainda acreditava ser possível apostar numa normalidade democrática. É claro que o impeachment também faz parte da normalidade, pois é uma expressa previsão constitucional, mas sem dúvida é uma opção traumática. Porém, ao longo dos últimos tempos, os abusos se acumularam de maneira constrangedora. Viramos pária e chacota internacional. Como dizia Nelson Rodrigues, “os idiotas perderam a modéstia”. E recrudesceram na sandice, no escárnio às instituições, no desprezo aos sentimentos humanitários.

O Presidente é sádico. Escolheu um grupo de indigentes intelectuais que não tem nenhum compromisso com qualquer vestígio de humanismo ou ato civilizatório. No meio da crise das vacinas, o fantoche que ocupa o cargo de Ministro da Saúde disse ser difícil estabelecer tratativas com a Índia por causa do problema com o fuso horário! Meu Deus, é muita humilhação! Em um programa de televisão, o Presidente da República, ele próprio, dá a surpreendente notícia de que um de seus Ministros está produzindo a vacina. Fantástico! Todos os laboratórios do mundo, todos os cientistas, todos os médicos, enfim, toda a inteligência do mundo que estava dedicada ao descobrimento, ao aperfeiçoamento, ao estudo da cura do vírus. E nosso Presidente comunica que em breve um Ministro dele vai mostrar uma vacina feita por ele. O apresentador pergunta, perplexo, onde o Ministro está trabalhando na vacina. O Presidente responde não saber e manda perguntar ao Ministro.

É muito desprezo pela vida, muito desdém com a dor, muita ausência de solidariedade. É pura maldade, doença, barbárie, sadismo. Num momento em que se discute a falta das vacinas e o aumento vertiginoso do número de mortos por absoluta negligência do governo, que não cuidou de priorizar a compra, o Presidente tenta encontrar motivos para distrair a nação do que é realmente sério e faz chacota, usando palavrões, sobre leite condensado, chicletes e alfafas. Não dá mais, chega, basta!

O impeachment, como sabemos todos, é um processo político-jurídico. Mesmo quando está configurada a prática do crime de responsabilidade, ainda é necessário que estejam também presentes as condições políticas. É assim o rito constitucional. Até por isso defendi a necessidade de discutirmos a hipótese do crime comum, que entendo ter ocorrido mais de uma vez. Mas os fatos se precipitaram. Mesmo com todas as naturais dificuldades, sinto estar maduro o momento para o impeachment. Sei que o Presidente, com sua absoluta não responsabilidade com a ética e despreocupação com a coisa pública, está com os cofres abertos para impedi-lo. Também acompanho os estudos que afirmam que, sem movimento nas ruas e sem a perda da popularidade abaixo de 20%, o impeachment não passa. Mas, penso, essa é a análise fria em tempos normais. E o imponderável? E o momento teratológico que vivemos? E as milhares de mortes que poderiam ter sido evitadas? E as dores insuperáveis das pessoas abandonadas? E a falta de oxigênio que tirou o ar das pessoas, o ar real de quem precisou, e o ar que alimenta a lucidez de todos os que acompanham o filme de terror que virou o Brasil?

Esses monstros estão brincando com a vida, estão rindo da tristeza, estão ridicularizando a dignidade das pessoas. Será que ainda assim o critério para o impeachment será aquele frio do “toma lá dá cá”? Será que o político brasileiro virou também esse sádico desprovido de qualquer viés humanitário? Aqui não cabe nenhuma discussão entre esquerda, direita, centro. É civilização e barbárie. É humanismo ou bandidagem. Vamos convocar o Congresso e votar o impeachment. Cada um responderá pela sua postura. Volto a Augusto dos Anjos, em Tristeza de um quarto minguante:

“…

Diabo! Não ser mais tempo de milagre!

Para que esta opressão desapareça

vou amarrar um pano na cabeça

Molhar a minha fronte com vinagre.

Então dois ossos roídos me assombraram…

-Por ventura haverá quem queira roer-nos?!

Os vermes já não querem mais comer-nos

E os formigueiros já nos desprezam.

Porque, longe do pão com que me nutres

Nesta hora, oh! Vida que a sofrer me exortas

Eu estaria como as bestas mortas

Penduradas no bico dos abutres!”

O Poder Judiciário é um poder inerte, só age quando acionado. O Supremo Tribunal não tem faltado ao país nessa hora. O Ministro Ricardo Lewandowski tem honrado a toga nesse momento de desespero. Agora, vamos testar o Legislativo. Sempre defendi que o Presidente Rodrigo Maia agia bem ao não colocar para votar os inúmeros pedidos de impeachment. Sabemos que sem a maioria necessária para aprovar o impedimento o Presidente da República sairia fortalecido. Mas esse seria o argumento racional para uma época de alguma normalidade. Não é o nosso caso agora. Esse genocida nos tirou o ar, colocou uma venda nos olhos dos brasileiros, sufocou não só os portadores do vírus, mas até mesmo crianças que morrem à míngua sufocadas pela ignorância que ele e o grupo dele representam.

Existe uma linha invisível que me separa, e separa boa parte dos brasileiros, quero crer, da maioria desses facínoras. O Presidente optou, deliberadamente, pela necropolítica. No início, politizou o vírus desprezando a ciência e afrontando à inteligência. Legou-nos mais de 250 mil mortos. Agora, levou a ideologia para as relações internacionais na questão da vacina. Isolou o país. Uma densa nuvem vai sufocar mais e mais o brasileiro. O Presidente tem se tornado uma poeira tóxica que impede qualquer um de respirar.

O pior é que se fôssemos escolher, tecnicamente, qual dos 64 pedidos de impeachment que dormitam na Presidência da Câmara, poderíamos pegar qualquer um, quase aleatoriamente. São inúmeros os crimes de responsabilidade por ele cometidos. Em recente matéria no Estadão, ouvidos vários especialistas a respeito do crime de responsabilidade, impressionou que cada professor trouxe em sua respectiva análise a tipificação de um crime diferente do outro. Isso é uma catástrofe, pois apresenta o Presidente como sendo serial killer em matéria de crime de responsabilidade. Se fosse escolher um, o que torna mais urgente a votação do impedimento, eu citaria o destacado pela grande professora Gabriela Araújo, os crimes contra os direitos fundamentais, especialmente o direito à vida.

Basta a certeza que temos hoje, que o Presidente teve oportunidade de comprar um número considerável de vacinas e optou, de forma deliberada e criminosa, por comprar hidroxicloroquina e cloroquina, contrariando toda a recomendação científica. Há que se apurar o que existe por trás dessa conduta criminosa, leviana e irresponsável. Na realidade, a postura do chefe do executivo na pandemia tem que encontrar um freio e esse limite tem que ser imposto por outro poder constituído. Ou o crime comum, no Supremo. Ou o impeachment, no Congresso. Ocorre que, mesmo no crime comum, o Congresso terá que ser ouvido. Logo, o impeachment é o caminho que resgata a dignidade do povo brasileiro.

Soube que a Covid internou a cartunista Laerte na UTI. Internaram a inteligência, a ironia, a irreverência, o humor. Também recentemente, nesses tempos angustiantes, amigos resolveram abandonar a vida, deliberadamente, sem sequer se despedirem. O que nos resta é resistir, até em homenagem aos que se foram. E acreditar na resistência. Em honra aos que também acreditavam, mas foram vencidos. Como ensinou o poeta Eduardo Galeano:

“A utopia está no horizonte. Me aproximo dois passos, ela se afasta dois passos. Caminho dez passos e o horizonte corre dez passos. Por mais que eu caminhe, jamais alcançarei. Para que serve a utopia? Serve para isto: para que eu não deixe de caminhar.”

Por isso, sigo escrevendo.

Publicação Original: Poder 360

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