A LIBERDADE E A FOME

 

Liberdade é pouco. O que eu desejo ainda não tem nome.

Clarice Lispector

 

Estamos chegando a um ponto de exaustão preocupante. O Brasil chegou. Nós, boa parte dos brasileiros, chegamos. Ninguém suporta viver sob o jugo de um governo fascista que afronta diariamente as instituições, que aposta no caos e que, dia a dia, se esmera em grosserias e atitudes golpistas e antidemocráticas.

 

Hoje, a vida passa como num filme barato de terror. Para sobreviver a tanta ignorância ou aprendemos a desenvolver uma saudável sensação de ódio – que desopila as veias -, ou nos desligamos um pouco da realidade. A convivência com o baixíssimo nível do governo federal funciona como o que ocorre num estado de pré-infarte: um entupimento lento e progressivo antes da obstrução fatal do fluxo sanguíneo. Também o cidadão lúcido se vê sendo corroído por dentro, em suas entranhas; sente que o corpo já não suporta mais tanta bestialidade institucionalizada. O sadismo e a desfaçatez do Chefe da nação viraram rotina, na qual a vulgaridade é a regra.

 

Nesta semana, uma cena chocou o Brasil; não só o meio jurídico, mas a todos que ainda conseguem manter um pouco de indignação com a barbárie. Um jovem – que havia sido preso por ter furtado um celular e ter devolvido o aparelho à vítima -, teve sua prisão revogada na audiência de custódia. Para surpresa, tristeza e perplexidade de todos, o cidadão fez uma súplica à Juíza que presidia a audiência: “a senhora deixa eu ficar preso até a hora da janta? Senão eu posso cair na rua de fome.” A falta de qualquer perspectiva doeu fundo. Como advogado criminal, estou acostumado a ver a notícia da liberdade comemorada com intensidade máxima e absoluta. Mas a fome é maior, mais forte e mais pungente do que até mesmo a liberdade. O medo da fome. A memória da fome. A dor da fome. O desespero da fome.

 

Em 2014, o país tinha saído do mapa da fome da ONU, e agora voltou tragicamente. Hoje, no Brasil, 33 milhões de brasileiros sofrem com a falta de alimentação; entre esses, várias crianças. E mais da metade da população, 58.7%, vive com algum grau de insegurança alimentar – não sabem se vão comer alguma coisa no final do dia.

 

E a população carcerária aumenta de forma brutal: calcula-se que 918.523 pessoas estão privadas de liberdade; dessas, 412.060 são presos provisórios. Se contarmos o número de mandados de prisão em aberto, o país passaria muito de 1 milhão de segregados. Um desastre humanitário diante das condições medievais dos presídios brasileiros.

 

No meio de tanta desgraça, é humilhante ver um cidadão pedir para continuar detido pelo menos “até a janta”, pois sabe que passará fome fora da cadeia. É a demonstração cabal da falência do sistema e do país. O bem maior da liberdade é subjugado pelo instinto de sobrevivência. Pelo tom de voz do prisioneiro, quase um fiapo, uma súplica sentida, percebe-se que a fome tem sido sua companheira. Ao pedir para continuar preso, ele não parece se humilhar, quer apenas poder se alimentar para não desmaiar nas ruas. Essas ruas que acolhem mais de 500 mil pessoas que não têm onde morar. Na verdade, o episódio envergonha a todos nós, especialmente aos que não se posicionam contra a realidade do Brasil.

 

É de uma tristeza infinita a fala de um prisioneiro na Pastoral Carcerária da Arquidiocese de Belo Horizonte publicada hoje em todo o Brasil. Ele descarregou a tornozeleira eletrônica para se tornar foragido e depois se entregou para ser preso: “Na prisão é menos ruim. Como sou tranquilo e mais velho, o pessoal me respeitava. Eu tinha até amigos lá. Já na rua é solitário demais. Acordo sem saber se vou comer ou se estarei vivo no fim do dia”. É de cortar o coração; a fome humilha e mata.

 

Essa certa sensação de estarmos meio anestesiados por tanta desigualdade e pobreza não pode nos impedir de fazermos o enfrentamento do que ocorre. Enquanto a fome for a companheira inseparável de milhões de brasileiros, não teremos nenhuma condição de nos sentirmos realmente dignos da raça humana. Uma recente pesquisa revelou que a parcela de 1% dos mais ricos do mundo detém mais do dobro da riqueza possuída por 6.9 bilhões de pessoas.

 

E as dores se acumulam. O desprezo do governo pelos caminhos do país em todas as áreas faz com que seja aparentemente normal um jovem brasileiro suplicar para permanecer mais um tempo dentro do sistema carcerário para conseguir se alimentar.

 

É a negação do que diz o grande Cervantes, pela boca de Dom Quixote: “A liberdade, Sancho, é um dos dons mais preciosos que aos homens deram os céus; pela liberdade, da mesma forma que pela honra, se deve arriscar a vida.” No Brasil o desespero e o medo da fome superam a ânsia da liberdade.

 

Antônio Carlos de Almeida Castro, Kakay

Publicado no O Dia.

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