A NOITE EM PARIS E AS BOMBAS EM GAZA E ISRAEL

Dize-me: ‘Existe acaso um bálsamo no mundo?’

E o Corvo disse: ‘Nunca mais.’”

Edgar Poe, poema O Corvo

 

A noite em Paris me faz bem e me acolhe. O sonar das ambulâncias ao fundo já me inquietou e certa perplexidade me dominava. Um quase medo, pânico de algo que não sabia definir. Nada que hoje não me tranquilize. Paris à noite é, hoje, uma cidade minha. Embaixo da minha varanda, sempre tem um cantor entoando La Vie En Rose em frente ao Flore. E alguém no sax tocando uma música francesa. Para mim, é como se fosse um grande concerto na Salle Pleyel ou na Opera Garnier. É uma Paris que pulsa. Encanta. Minha. Que vive e faz viver.

 

Ao correr pelas manhãs, no Jardin des Tuileries, transporto-me para um mundo que também encanta e que parece irreal. As dezenas de crianças com seus professores, fazendo exercícios ao ar livre, rindo, gargalhando, alegres e livres da realidade, fazem-nos, momentaneamente, esquecer da tragédia que se abateu sobre Palestina e Israel. Até os corvos, que sempre ressoam sobre as árvores desse jardim, parecem entender a dramaticidade do momento.

 

Paris é uma vila complexa. As gigantescas, e quase desumanas, filas para entrar no Louvre ou no d’Orsay nos fazem acreditar que o mundo tem chance. Se tem tanta gente que aposta na arte, é porque a vida continua tendo salvação nesta terra inóspita. Mas, ao continuar a corrida, chegando em casa, na Place Saint Germain, a fila enorme em frente à Louis Vuitton me faz, outra vez, duvidar da humanidade.

 

Questões complexas e eternas, como essa da Palestina e Israel, servem como um teste para nossas relações pessoais. Uma palavra mal posta acende o rastilho de pólvora prestes a explodir. A omissão é sempre uma cumplicidade. O cuidado ao se posicionar não é covardia, é o respeito que se deve ter ao andar em um campo minado. Tenho posição e tenho amigos dos dois lados. Talvez, as sirenes à noite em Paris voltem a me atormentar e eu não terei mais o sono leve que me embalava.

 

Mas como dormir com o barulho rude e gutural da guerra, das bombas, dos mísseis? Não só dos mísseis de hoje, mas dos que arrasaram por tanto tempo a Faixa de Gaza, uma prisão medieval a céu aberto. Chaga do mundo. Vergonha da humanidade.

 

A nossa hipocrisia fez com que não ouvíssemos o ronco da fome das crianças, esse ruído já não nos tira o sono. Fome que seria aplacada com os bilhões de dólares dos EUA para apoiar a guerra estupida e inválida. Uma guerra que serve aos senhores de sempre. E aos donos do mercado das armas. Que elege e que derruba os presidentes americanos. Uma guerra que não serve à humanidade e que nos deixa acachapados diante da estupidez humana, que tem nome e sobrenome. E que serve sempre aos mesmos senhores.

 

Como nos lembra Hilda Hilst, “O que é obsceno? Obsceno? Ninguém sabe até hoje o que é obsceno. Obsceno para mim é a miséria, a fome, a crueldade, a nossa época é obscena”.

 

Antônio Carlos de Almeida Castro, Kakay

 

 

Artigo publicado no O Dia e IG.

Deixe um Comentário





Esse site utiliza o Akismet para reduzir spam. Aprenda como seus dados de comentários são processados.