Banalização da violência
“não gosto de ver tanta água reunida sei que é o mar mas nada é o que parece. visto de guantánamo o mar são grades de infinita tessitura visto de goreé é o marulhar multissecular de lágrimas exangues preferia que a água se dispersasse.”
Boaventura de Sousa Santos
O ódio, que foi a principal ferramenta de trabalho dos bolsonaristas nos últimos anos, marcou a ferro quente boa parte do povo brasileiro. A estratégia da disseminação da violência embruteceu as pessoas e cavou um poço profundo, afastando famílias, amigos e companheiros de trabalho. Esse sempre foi um dos objetivos: separar e dividir. Radicalizar para isolar e impedir que o diálogo se fortalecesse como instrumento para dirimir os possíveis conflitos e dúvidas. Uma sociedade com ódio usa a violência como maneira de se expressar e um povo que não aprofunda as discussões tende a ser mais fácil de ser tangido, como gado. Daí a virar uma seita é um passo pequeno.
A irresponsabilidade na condução dessa estratégia pode levar a um caos quase incontornável. Pessoas que perdem a capacidade de pensar, de refletir e de dialogar são inclinadas a ter comportamentos que não existiriam em tempos de normalidade. O próprio conceito de normalidade fica extremamente fluido e, muitas vezes, não conseguimos reconhecer os nossos espaços nos dias atuais. A provocação barata, o clima insidioso de hostilidade e a agressividade vulgar passaram a ser uma regra constante nas relações. Tudo isso emoldurado com a valorização das armas, com a exaltação das condutas machistas e racistas e até no culto à tortura e no desprezo às minorias.
Uma sociedade doente que precisa se alimentar da ausência de humanidade e compaixão. Uma admiração abjeta do comportamento mais bárbaro possível. Ser humanista, para esse grupo, passou a ser sinônimo de fraqueza. A inversão dos valores fez com que, muitas vezes, não reconhecêssemos o nosso próprio ambiente de viver. Passamos a nos sentir sem espaço no mundo. Lembro-me do Poema em linha reta, do Pessoa, na pessoa de Álvaro de Campos, “Arre, estou farto de semideuses! Onde é que há gente no mundo”.
Nessas horas, é preciso pensar mil vezes antes de nos posicionarmos. Alguns comportamentos criminosos afloram e um certo frenesi toma conta das pessoas. O episódio das mortes bárbaras das crianças nas escolas, o ataque cruel e covarde aos estudantes e a propagação nas redes sociais dos atos insanos ou de falsos alarmes de ataques, tudo hipervalorizado, vão nos colocando novos desafios. Hoje, com o medo espraiado entre as pessoas, um comportamento de manada vai tomando conta mesmo. O medo é o pior inimigo, pois faz com que as análises não sejam racionais.
E esse sentimento, quando disseminado, leva a um pânico que turva a capacidade de reação e de raciocínio lógico. Quando grupos passam a ter orgulho de serem violentos e cruéis é porque houve uma metástase no tecido social. A sociedade já começa a perder aquele senso de humanidade e solidariedade que acaba colocando freio nos instintos mais primitivos. O homem tem que olhar e ver no outro um semelhante sujeito de direitos para poder respeitar e viver em comunidade. Se o que prevalece é o ódio e o temor, a expectativa de viver em paz social passa a ser efêmera. Nenhuma comunidade consegue sobreviver em um sistema de vale tudo.
A banalização da violência e a cultura do ódio causaram uma modificação profunda em boa parte das pessoas. O pânico generalizado, especialmente com os atos criminosos nas escolas, deixa um clima de perplexidade no ar e a insegurança só aumenta o grau de medo, mesmo sem, muitas vezes, ter nenhum fundamento. Elas estão com pavor sem conseguirem identificar de onde vem a estranha sensação de agonia.
O ministro da Justiça, Flávio Dino, agiu com rapidez e inteligência para tentar enfrentar o clima de pânico que se instalou na sociedade. É sabido que esse estado de coisas se difunde através da internet. E, embora os perfis nazistas sejam os alvos naturais, há muito mais por trás desse movimento que indica existir interesses políticos e financeiros a sustentar essa barbárie. O ministro deu notícia de mais de 1000 operações que já foram deflagradas com a derrubada de perfis criminosos que resultaram em algumas prisões e busca e apreensão. Foram anunciadas 10 medidas de contenção imediata à violência escolar. O Ministério da Justiça editou a Portaria 350, regulando os serviços prestados pelas plataformas digitais. A Secretaria Nacional do Consumidor vai instaurar processos administrativos para investigar a responsabilidade de cada empresa sobre os conteúdos com apologia à violência escolar. Há previsão de multa que pode chegar a 12 milhões de reais. E poderá ser solicitada a retirada do ar do site da empresa, ou até a suspensão da empresa no território nacional. Com a resistência inicial, sobretudo do Twitter, observou-se em grupos de whatsapp uma razoável onda de cancelamento dessa plataforma digital, o que demonstra que toda a população está atenta e acompanhando esse momento grave. O Ministério da Justiça pediu a exclusão de mais de 430 contas do Twitter que continham hashtags relacionadas a ataques em escolas.
As delegacias de crimes cibernéticos das polícias civis e federal estão agindo 24 horas na tentativa de identificar perfis que fazem apologia à ataques nas escolas. A rapidez com que agiu o Governo certamente deixa um recado claro de que não iremos seguir o caminho da violência instalada, por exemplo, nos EUA.
Penso ser fundamental que façamos um grande esforço para enfrentar essa cultura de ódio e hostilidade que foi sedimentada no governo Bolsonaro. Com o crescimento da extrema direita no mundo todo, com o aparecimento de células nazistas pelo país afora e com o culto às armas, ao ódio e à violência no governo Bolsonaro, fizeram o caldo de cultura para o recrudescimento dos atentados. Resta fazer o enfrentamento, não só com as ações do Governo, mas, e principalmente, com a volta do sentimento de solidariedade e com a visão humanitária nas famílias brasileiras. Lembro-me da contadora de histórias do Malawi, Upile Chisala:
“E hoje seus ossos chamaram sua pele
e disseram:
Vamos lá fazer isto de novo”
Antônio Carlos de Almeida Castro, Kakay