CAFÉ DE FLORE, LES DEUX MAGOTS, A BAGUETE E O ESPÍRITO OLÍMPICO

“O almoço mata a metade de Paris, o jantar a outra metade.”

Montesquieu

Anos atrás, fiz análise com o psicanalista Eric Laurent, em Paris. As sessões não tinham hora certa e, como saía do Brasil para encontrá-lo, ele me atendia, ocasionalmente, até 2 vezes por dia. Se eu ficasse uma semana em Paris, era como ter um intensivo de terapia. Os pacientes eram todos psiquiatras, eu era a exceção. Até a sala de espera era interessante. Porém, o que me fazia um bem danado eram as caminhadas no Jardin des Tuileries após cada sessão. O consultório ficava em uma rua ao lado do Louvre e andar pelo jardim do museu era como a continuidade da sessão de terapia. Conservei esse hábito e, sempre que estou em Paris, corro sozinho pelo jardim que era uma extensão do consultório. Depois de um certo tempo, dei-me alta, mas continuei a pensar na vida ali, ao ar livre, no mesmo jardim, seja no frio do inverno ou no calor, como agora neste verão.

Viver as olimpíadas em Paris foi uma experiência muito rica e interessante. Especialmente constatar as intervenções que foram feitas na cidade. Uma ousadia da Prefeita e do Comitê que organizou as provas. Para quem ama Paris, e a considera como a cidade mais linda do mundo, a expectativa era muito grande. 

Foi incrível ver o campo de vôlei de areia encrustado abaixo da Torre Eiffel. Quando a noite ela piscava, toda iluminada, era como se fosse um sonho. Parecia uma montagem de tão impactante. E foi extraordinária a coragem de fazer uma prova no Sena, sem falar na cerimônia de abertura que ocupou as pontes e as margens do rio. O medo de um atentado fez, corretamente, com que a região fosse toda isolada e cercada. Assim como eram montadas estruturas de acordo com cada prova de rua, especialmente as corridas. Claro que várias delas eram fixas, como na Place de la Concorde, ou no Les Invalides, mas outras obedeciam ao fluxo das provas. 

A cidade se vestiu para receber as competições e, mesmo com o incrível aparato de segurança, com um número enorme de soldados fortemente armados, com dezenas de viaturas andando ao lado de centenas de motos e com todas com sirene ligadas, o sentimento de bem estar e segurança era muito grande, uma tranquilidade. 

Quem apostou no caos, perdeu! O espírito olímpico desfilou pelas águas turvas e voluptuosas do Sena e se esgueirou pelas pequenas ruas, jardins, parques e boulevards. Para nós, turistas, era uma beleza ter os cafés, os restaurantes e os museus vazios. Ver o Louvre sem nenhuma fila dava uma sensação de montagem, mas, felizmente, era real.

“París, rosa magnética,

antiga obra de aranha,

estava ali, prateada,

entre o tempo do rio que caminha

e o tempo ajoelhado de Notre Dame:

uma colmeia de mel errante,

uma cidade da família humana.”

(Pablo Neruda, Paris, 1927)

Sempre achei os franceses muito simpáticos e os parisienses charmosos. Não deve ser fácil morar em um lugar que recebe 90 milhões de turistas todos os anos e de todas as partes do mundo. Da varanda do meu apartamento, debruçada sobre o Café de Flore, acompanho milhares de turistas tirando fotos dessa verdadeira instituição local. 

Os cafés são a cara e, até, a identidade da cidade. E existe uma certa rivalidade existencial entre o Flore e o Les Deux Magots. Separados por uma pequena rua, Saint Benoit, eles disputam, aparentemente, a preferência dos locais e dos turistas. Eu vou diariamente ao Café de Flore e, reconheço, o Les Deux Magots não é muito minha praia. Mas, em uma madrugada, presenciei uma cena que comprova o que eu penso sobre a simpatia dos parisienses. Enquanto tomava meu penúltimo copo de vinho, sentado no Flore, com um livro prestes a terminar, vejo entrar, rapidamente, uma garçonete do Les Deux Magots – que eu conheço de vista, pois passo várias vezes ao dia na frente desse café que é vizinho à entrada do meu apartamento. Curioso, prestei atenção na cena. A moça foi até um garçom do Flore e pediu uma baguete, explicando que tinham acabado as do Les Deux Magots. Para os mal-humorados que implicam com os franceses e que alimentam uma falsa rivalidade entre os cafés, entre os parisienses e os turistas, foi interessante ver a simpatia com que a garçonete voltou ao Les Deux Magots com a baguete do Café de Flore. São as surpresas que, quem olha Paris com olhos amorosos, pode ver acontecer.

Durante o período das olimpíadas, fizemos uma opção de quase não sair do bairro de Saint Germain, pela facilidade de andar a pé e evitar algum bloqueio. Como é um bairro literário e boêmio, o que não faltam são bons restaurantes, cafés e livrarias. Ver o mundo passar, indolentemente, em frente a um café é um programa obrigatório em Paris. Nessas horas, o convívio com a vizinhança nos faz quase esquecer que estamos em uma cidade grande.  

Lembro-me que, quando compramos o apartamento e fomos reformá-lo, recebemos uma notificação amigável do Les Deux Magots informando que existia um vazamento no meu apartamento e que era no café que a água escorria. Naquele dia, senti-me quase um francês. Meses depois, ao inaugurar o apartamento, notei que havia várias placas no interior do meu prédio com nome do vizinho com a indicação: “avocat au Cour”. Não tive dúvida, mandei fazer duas placas: “Kakay, avocat au Flore.” O síndico me notificou para eu explicar a placa. Respondi que era no Café de Flore que eu trabalhava, lia, escrevia e recebia cliente. Aí me senti realmente francês, quase parisiense.

Como disse Gustave Flaubert : “A cidade mais bela do mundo é a que mais nos emociona”.

Antônio Carlos de Almeida Castro, Kakay

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