DELAÇÃO: UMA FACA DE DOIS GUMES

“Um estrangeiro, voltando de uma viagem ao Terceiro Reich, ao ser perguntado quem
realmente governava lá, respondeu: o medo. Por que temem tanto a palavra clara?”
Bertolt Brecht, poema Os Medos do Regime

A Operação Lava Jato, dentre várias outras medidas que foram contra a Constituição e
contra as leis, estuprou o instituto da delação premiada, que veio para servir como meio
de obtenção de prova – obviamente, também como instrumento de defesa – e foi
completamente desvirtuado para ser um jogo de poder por parte da República de
Curitiba. Ficou evidenciado, à época, que era uma ferramenta nas mãos do ex-juiz
Sérgio Moro e dos seus procuradores adestrados.

Houve um procurador que admitiu, em parecer em um processo no TRF4, que as
prisões alongadas serviam como mecanismo para obter delação. Um crime. Um acinte.
Durante a Operação Lava Jato, tive informações, por parte de clientes, advogados e
policiais federais sérios, que existia uma orientação para os investigados, por parte do
bando lavajatista, não me contratarem. Ou seja, o grupo de Curitiba usava o instituto
como instrumento do poder.

Naquele momento, cheguei a escrever um artigo: “Todo delator mente, omite, protege
e atende a pressões”. Quem colocou ordem no regramento sobre a matéria foi
exatamente o Supremo Tribunal Federal. Quando as delações começaram a chegar à
Corte Suprema, os ministros impuseram limites e exigências que trouxeram o instituto
da delação para os trilhos constitucionais. É bom lembrar que o Judiciário é um poder
inerte, daí a importância da ação de muitos advogados que levaram teses à Corte.

É importante analisar qualquer delação sob o prisma da jurisprudência, da lei e da
Constituição. Se um delator mente para prejudicar alguém, inventa fatos ou cria
situações não verdadeiras, ainda que para se proteger, sua palavra, sem dúvidas, tem
que ser colocada à prova e pode ser, inclusive, rescindida a colaboração. É
fundamental, nesses casos, que se dê o contorno exato das consequências dessa
medida. O que resta de útil e que pode persistir no processo.

Certamente, existem casos em que a rescisão de uma delação não impacta em nada
na prova produzida sob o estrito cumprimento do devido processo legal, principalmente
se o colaborador deu causa.

Discute-se, neste momento, uma alegada quebra de cautelares por parte do Mauro Cid.
Se se comprovar que ele, ou qualquer outro, descumpriu alguma medida cautelar –
como ter acesso a instrumentos que ele, delator, não poderia acessar, ou teve acesso
a pessoas com quem não poderia ter contato –, existe uma chance real de voltar a ser
preso. Contudo, para não ter o direito aos benefícios que constam do acordo, deveria
haver efetivamente o descumprimento de cláusulas ali previstas e não apenas de
cautelares pessoais, que não poderiam constar do acordo ou terem sido fixadas em
razão dele.

Nesse contexto, caso o acordo seja rescindido em razão de uma conduta exclusiva do
delator, o conteúdo da delação permanecerá hígido, válido e sem nenhum prejuízo para
a prova produzida após as investigações encetadas a partir de sua palavra, que sempre
deve ser vista com cautela. E, claro, muito menos terá o descumprimento de alguma
cautelar qualquer efeito sobre provas produzidas pela investigação criminal.
Essa é a importância de se cumprir, em um processo penal democrático, todas as
normas constitucionais. Não se pode pretender anular ou rescindir uma delação
premiada pelo fato de o delator ter desobedecido a uma cautelar processual. Como já
destacou o Supremo, inexiste do ponto de vista jurídico relação direta entre cautelares
pessoais e acordo de colaboração premiada.

O delator, por definição, não é uma pessoa confiável. Logo, é necessária uma análise
técnica de cada situação. Não se pode admitir que uma mentira, que não diga respeito
ao cerne do que foi delatado, possa servir como instrumento para colocar fim a toda
uma investigação séria e técnica. Como advogado, entendo que a defesa pode criar e
ousar no processo penal. O princípio constitucional da ampla defesa permite liberdade
para sustentar questões que, muitas vezes, não detêm suporte jurídico óbvio, nem de
fácil percepção. O advogado deve sempre pensar fora da caixa. Faz parte. Mas a última
palavra está com o Supremo Tribunal, que terá como norte a Constituição da República.

Quando vejo uma delação, remeto-me a Pessoa, no Livro do Desassossego:
“Tenho a náusea física da humanidade vulgar, que é, aliás, a única que há. É capricho,
às vezes, em aprofundar essa náusea, como se pode provocar um vômito para aliviar a
vontade física de vomitar”.
Antônio Carlos de Almeida Castro, Kakay

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