Entre a náusea e a rosa

“Noventa por cento do que escrevo é invenção. Só dez por cento é mentira.”
Manoel de Barros

Quando meu pai “quebrou”, eu devia ter perto de 9 anos. Saí de uma casa grande e
bem situada para uma casa mínima e mais nos arredores da cidade. A casa toda
cabia na sala da outra. Minha mãe teve uma ideia genial: disse aos filhos que optou
por um lugar bem menor para todos ficarmos mais próximos. Brilhante tirada. Nós, que
já éramos muito unidos, ficamos absolutamente grudados. Era uma delícia. Só
descobri que tínhamos “quebrado” anos depois. E não fez diferença.

É preocupante acompanhar o que está acontecendo no mundo. Quando eu era
menino lá em Patos de Minas, era feliz e sabia. As pessoas que me inspiravam eram
Fernando Pessoa, Jorge Amado, Portinari, Picasso, Tostão, Dirceu Lopes, essa turma.
Como não existia televisão, a gente ficava o dia todo lendo, contando história e
inventando casos. Mesmo quando a televisão chegou, não existia a hipótese de ter em
casa 2 aparelhos. Televisão no quarto era algo impensável. Era na sala e todo mundo
vivia amontoado.

O sonho da minha geração era fazer universidade. Filho de um fazendeiro que
praticamente não estudou e de uma professora primária, os cinco filhos seguiram o
desejo dos pais: estudaram em universidade pública. Minha mãe rezava para eu ser
funcionário do Banco do Brasil, mas a veia de advogado falou mais alto. Nunca fiz
concurso. Nunca tive emprego. Hoje, vejo que a meninada não valoriza tanto a
universidade. O empreendedorismo ocupa um espaço privilegiado.

As boas leituras foram, em parte, substituídas por textos rápidos nos computadores,
na internet. A pesquisa, que ajuda a formar a cultura do advogado, vai sendo trocada
pelo uso da IA. Em todas as áreas, o mundo vai se diminuindo a uma mesmice, vai
ficando raso. Nesta semana, a Editora Kotter, de Curitiba, anunciou o cancelamento do
Prêmio Kotter 2025 após constatar que as obras eram geradas por inteligência
artificial. E, pasmem, uma vereadora bolsonarista de Santa Catarina propôs excluir um
clássico de Jorge Amado por “romantizar o estupro” e “promover a apologia à
criminalidade”.

Esse é o pano de fundo do enorme fosso a que o povo brasileiro está sendo
submetido. A mediocridade passou a ser a regra da extrema direita. Há um enorme
descompromisso com uma sociedade mais justa e igualitária. O estado de Minas, com
uma sólida tradição cultural e princípios literários e poéticos, tem hoje como
governador um gestor do nível de um Bolsonaro. O fundo do poço do obscurantismo.
Essas inquietações não estão isoladas e soltas. Há um nítido movimento de desprezo
por qualquer análise crítica. É óbvio que as divergências políticas sempre serão
saudáveis. E, certamente, contribuem para o amadurecimento de uma sociedade mais
justa. Ocorre que o momento expõe posturas dramáticas.
Não há nada de preocupante com a divisão entre direita e esquerda. Essa nunca foi a
questão. O que assusta e causa indignação é um bando de acéfalos, depois de pedir,
covardemente, a invasão do Brasil pelos norte-americanos, agora, de maneira
criminosa e subserviente, vir defender Trump quando ele resolve, prepotentemente,
pregar a inocência do Bolsonaro. Inclusive com ameaças. Talvez preparando o terreno
para um asilo político. Reagiu bem o Presidente Lula ao defender a soberania
nacional.

O que se espera de cada um de nós é um pouco de dignidade. É preciso reagir para
que o fascismo tenha seu lugar reservado no lixo da história.

Como nos ensinou Leão de Formosa, no poema Sonetilha Existencial: “Sabe que a vida é viscosa. Sabe que
entre a náusea e a rosa foi que a ostra fez a pérola”.
Antônio Carlos de Almeida Castro, Kakay

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