MENTIRA: QUASE DESESPERO ÍNTIMO
“Bati nas pedras dum tormento rude.
E a minha mágoa de hoje é tão intensa
Que eu penso que a Alegria é uma doença
E a Tristeza é minha única saúde.”
Augusto dos Anjos
Há um quase desespero íntimo ao nos defrontarmos com a mentira, toda prosa e segura, em horário nobre. Ela, a mentira, vestida de gala, feliz e ditando regra em uma entrevista com 80 milhões de espectadores. Imaginem o poder de uma mentira deslavada, sem nenhum critério ético ou pudor, se impondo a qualquer tipo de pergunta. A resposta para ela, a mentira, não precisa, claro, ter qualquer compromisso com a pergunta. A mentira, soberana, banca o jogo e distribui as cartas.
Ao ser indagada sobre o fato de ter ridicularizado, humilhado e desprezado a dor dos que morreram com falta de ar, pela escassez de oxigênio em Manaus, ela, a mentira, poderosa, negou. Peremptoriamente. E ainda provocou: apresente o vídeo. O vídeo existe, circulou pelo país todo à exaustão, mas a verdade rendeu-se à mentira. Não foi apresentado o vídeo avassalador e a mentira venceu a verdade. Os seguidores da mentira sentiram-se vitoriosos e ávidos por mais mentiras; riram da fraqueza e da fragilidade da verdade. Como profetizou Charles Bukowski: “Era isso que eles queriam: mentiras. Mentiras maravilhosas. Era disso que precisavam. As pessoas eram idiotas, seria fácil para mim assim.”
E a mentira se impôs. Sem escrúpulos, sem ética e sem pudor, tudo fica mais fácil. Ainda durante a entrevista, quando questionada se ela havia xingado ministros dos Tribunais Superiores, a mentira cresceu. Não só negou o óbvio, como afrontou a verdade e chamou-a de falsa! Humilhante ver os fatos serem tratados com desdém, com a superioridade própria dos medíocres sem limites, e ter que ouvir a mentira dizer para a verdade que ela, a verdade, era uma fake news. Como sustentar uma discussão com quem não tem absolutamente nenhum critério de seriedade?
E o espetáculo dantesco seguiu com a mentira em noite de gala, que se impôs 40 vezes em 40 minutos e em todas as áreas. Na área da economia, afirmou que somos um país em franco sucesso. A verdade, covarde e pusilânime, não perguntou sobre a fome de 33 milhões de brasileiros. A mesma verdade, cúmplice da mentira, não questionou sobre o desemprego. Negou-se a arguir sobre a corrupção da família da mentira; acovardou-se e não indagou sobre as rachadinhas e ainda fechou os olhos sobre a questão do patrimônio inexplicável da mentira. Aí é que a verdade perdeu completamente a hipótese de ser levada a sério. E impediu a mentira até mesmo de exercer seu fascínio por ela mesma. A mentira teve que optar pelo silêncio.
Não confrontada com quase nenhuma pergunta constrangedora, a mentira se escondeu atrás da omissão. Na realidade, a mentira, era óbvio, tinha um acordo com a verdade: ao não se apresentar, a verdade absolvia a mentira. Um jogo de interesses no qual a mentira foi poupada. Logo ela, ávida para pontificar para milhões de incautos à espera de uma história, uma desculpa, ainda que esfarrapada.
Mas se a mentira vence por absoluta falta de compromisso com os fatos, por ter se empoderado exatamente por ver sua versão unilateral ser imposta por uma mídia, no mínimo omissa, e uma elite comparsa, a verdade fica muda e não tem força para se impor.
E o país vai sendo tragado pela obtusidade na discussão sobre o seu destino. Não existe como conversar séria e profundamente com a mentira. Não existe diálogo sem interlocutores. A cena que se impõe no Brasil é a hipocrisia rindo da pobreza, do desespero e da miséria. E o Congresso Nacional assistindo impávido, cooptado e vencido, o país vagar sem rumo. E o Estado Democrático de Direito precisa amparar-se em grupos que se apresentam à sociedade para dizer um basta; e no Poder Judiciário, que, chamado a se manifestar, não se omitiu.
Espero que, no dia 2 de outubro, a verdade popular vença a mentira e nós possamos voltar a não conviver com tanta desfaçatez e dissimulação. O Brasil merece que a verdade tenha a coragem de vencer a mentira.
Recorrendo-nos sempre a Pessoa, na pessoa de Bernardo Soares: “Tudo quanto o homem expõe ou exprime é uma nota à margem de um texto apagado de todo.”
Antônio Carlos de Almeida Castro, Kakay