MINHA VIDA DE VOLTA
“Não sei se mereço
mas alguém trocou o fim
pelo começo.”
O poeta Boaventura de Sousa Santos, poema Não Sei, no livro Pitaia e Açaí.
Parafraseando Euclides da Cunha, ao retratar o sertanejo sendo “antes de tudo um forte”, eu diria que o advogado é “antes de tudo” um chato. Em regra, tende a ser o dono da verdade e tem um formalismo que não cabe no mundo de hoje. Aprendemos o direito processual para nos situarmos no mundo do contencioso, mas a maioria leva as regras que coordenam o processo para a vida. E aí, as amarras tendem a fazer o profissional, muitas vezes, vir antes da pessoa. E o mundo, que já é cruel, pode acabar sufocante.
O Brasil de hoje não é um país para principiantes. Diariamente, nós, que temos compromisso com o Estado democrático de direito, somos chamados a nos manifestar. Em um mundo que ainda é livre, viver sob permanente ameaça é muito cansativo. Praticamente toda semana participo de dezenas de manifestações, lives, debates, entrevistas, escrevo artigos e protestos, enfim, viver num mundo no qual o neofascismo está com o chicote na mão dá um trabalho danado.
Sinto uma falta profunda da minha infância em Minas Gerais, sem sequer televisão, as vezes sem luz elétrica e com um céu coalhado de estrelas para se ver deitado na relva. Sem pressa. Sem compromissos. Nadar nos córregos e montar em bezerros bravos, pois montar em cavalos era coisa de paulista. E muita história contada ao pé do fogão à lenha, ou poesia escutada nas noites livres de recitação. Noites imensas, sem fim. Com um cemitério em cima do morro a nos amedrontar. E uma capacidade infinita de nos apaixonarmos como se fosse sempre a última vez.
O que restou de nós nesses momentos de tamanha inquietação? Quantos amigos tivemos que deixar no caminho por incompatibilidade absoluta de sentir o mundo da mesma forma? Posso até conviver com um atleticano, mas como dividir a vida com um fascista, um racista ou alguém que apoia um torturador? Em qual encruzilhada nós nos perdemos tão completamente? O que restou de cada um daqueles meninos que queriam viver livremente e mudar o mundo? Remeto-me à doce Cecília Meireles:
“Há pessoas que nos falam e nem as escutamos,
há pessoas que nos ferem e nem cicatrizes deixam,
mas há pessoas que simplesmente aparecem em nossas vidas e nos marcam para sempre.”
Tenho saudades de muitos que optei por deixar ao longo do caminho. Não do que a vida fez com eles, mas do que cada um deixou cravado no meu modo “minino” de ser. Serei eternamente “minino”, sempre com uma bola de gude nos bolsos, mas hoje trago comigo angústias que não mais me permitem ser só aquele “minino”. De repente, o mundo nos chama.
Meu velho pai, boiadeiro e matuto, sempre me avisou que uma hora a vida ia cobrar uma postura e que nós estivéssemos preparados para o enfrentamento. Sem medo. Não a coragem dos heróis, mas a coragem da necessidade de sermos agentes do nosso tempo. Que tempo seria, perguntava eu? Você vai saber quando chegar o tempo, ele respondia de maneira simples. E o tempo chegou! É hora de cada um mostrar a que veio. O Brasil não suporta mais outros tantos anos de obscurantismo e barbárie. Vamos morar em Clarice Lispector:
“Renda-se, como me rendi.
Mergulhe no que você não conhece como eu mergulhei.
Não se preocupe em entender,
viver ultrapassa qualquer entendimento.”
Não pretendo repetir os números avassaladores da fome, do desemprego e da desesperança. Serei mais simples e direto: quero pedir tempo para viver a vida, para voltar a sonhar em praça pública, para recitar poesias em festivais no interior de Minas, para namorar sem celular e para andar nas ruas escuras sem medo. Cair no mar sem ter medo das ondas, coisa que o mineiro quase nunca consegue.
Enfim, viver como se, no máximo, o que nos aguardasse de ruim, muito ruim, fosse um governo do Fernando Henrique, no qual nossos fantasmas todos já eram conhecidos. E que saudades deles! Quero minha vida de volta e tenho feito por merecer isso em todos os momentos desses tempos estranhos.
Mas é necessário um longo abraço coletivo. Talvez não tenhamos todos a dimensão da corrupção interna das estruturas que o fascismo propicia. A corrosão é algo dilacerante. Serão gerações que vão sofrer a força destrutiva de toda e qualquer conquista humanista. Por isso, é preciso humanizar a nossa resistência, que será longa.
Enquanto houver poesia, amor, solidariedade e humor, nós vamos juntos fazer o enfrentamento. Eles, os fascistas, nem sabem o que é isso. E, certamente, não devem ter lido Mário Quintana, no poema O Tempo:
“A vida é o dever que nós trouxemos para fazer em casa.
Quando se vê, já são seis horas!
Quando se vê, já é sexta-feira!
Quando se vê, já é natal…
Quando se vê, já terminou o ano…
Quando se vê perdemos o amor da nossa vida.
Quando se vê passaram 50 anos!
Agora é tarde demais para ser reprovado…
Se me fosse dado um dia, outra oportunidade, eu nem olhava o relógio.
Seguiria sempre em frente e iria jogando pelo caminho a casca dourada e inútil das horas…”
Antônio Carlos de Almeida Castro, Kakay