Olhar que abraça, por Kakay

“A meio caminho entre a fé e a crítica está a estalagem da razão. A razão é a fé no que se pode compreender sem fé; mas é uma fé ainda, porque compreender envolve pressupor que há qualquer coisa compreensível.”

Fernando Pessoa, Livro do Desassossego

 

Eu sempre imaginei um mundo onde ser solidário seria o óbvio, não o excepcional. Coisa assim das pessoas que são ser humano. Nada de muito heroico ou diferente. O normal seria que todos tivessem um sentimento de torcer para que ninguém sofresse além das naturais mazelas da vida. Ainda que o egoísmo impere na sociedade, o egoísta estaria tão preocupado com seu próprio egoísmo que não teria tempo de se dedicar a ser sádico. Tipo assim, bem básico. Primário.

Vejam só a loucura em que nós nos metemos! Hoje qualquer um de nós, com um átimo de lucidez, carrega em si uma perplexidade do mundo. Um pasmo essencial, a que se referia Caieiro, que tem cada criança se ao nascer soubesse que nascera deveras. Medo da doença, do vírus, medo de se infectar e, a angústia maior, o medo de infectar alguém. Não é só contaminar o avô, o filho, a companheira, o amigo, mas sim o desconhecido, infectar alguém, enfim. O ato de se cuidar carrega, no fundo, o compromisso com o outro. É necessário seguir as regras e as orientações da ciência não somente para não correr o risco de se infectar, o que já é por si só importante, mas como compromisso social com o outro.

Todo esse contexto fez de nós pessoas ensimesmadas, preocupadas, quase tristes. Não querer contaminar uma outra pessoa é o primeiro sinal de caráter nestes tempos sombrios. Aqueles que saem por aí sem máscara desdenhando da ciência, ridicularizando o vírus, negando-se a vacinar, espalhando notícias falsas e teratológicas contra a vacina podem ser considerados não só assassinos em potencial, mas sim crápulas. Uns escroques. Não me permito mais conviver com esse tipo de atitude. O desprezo é o melhor tratamento, embora o desprezado, no mais das vezes de pouquíssimo alcance intelectual, sequer se sinta desprezado. Nunca leram Cecília Meireles:

“Já vem o peso do mundo
com suas fortes sentenças

sobre a mentira e a verdade
desabam as mesmas penas

apodrecem nas masmorras
juntas a culpa e a inocência

Já vem o peso da vida
Já vem o peso do tempo

Julga os donos da Justiça
suas balanças e preços

e contra os seus crimes lavra
a sentença do desprezo.”

Mas, no meio do caos, o que me encanta e seduz é a rotina daqueles que se dedicam a salvar vidas. Quando me encontro com alguém, mesmo fora do meu círculo íntimo, me preocupo ao extremo em não colocar quem quer que seja em risco. A realidade é cruel e cada vez mais estamos acompanhando a evolução do vírus ao redor do mundo. Mas, o que me impacta é a coragem diária e permanente das pessoas que se dedicam a tratar a doença.

Quando o médico e a enfermeira colocam em risco suas próprias vidas, em todos os segundos do dia, eu sinto um raio de esperança. O homem médio quando sabe que teve contato com alguém que pode estar com o vírus imediatamente se preocupa e toma as cautelas para se cuidar e não contaminar ninguém. Esses profissionais que cuidam da saúde fazem dessa exposição diária as suas vidas.

Porém, não são apenas o médico ou a enfermeira, mas também os que cuidam da limpeza, da segurança, da alimentação nos hospitais, nas UTIs. São pessoas que voluntariamente se colocam em situação de sério risco para fazer o enfrentamento da doença. Mesmo sabendo que podem infectar, involuntariamente, pessoas queridas do seu círculo de relação. Na grande maioria das vezes, dedicam-se de maneira anônima a cuidar de pessoas que sequer conseguem identificar e que não os identificam, pois se escondem através de máscaras e de roupas de proteção.

Para muitos dos doentes os olhos dos cuidadores passaram a ser o único contato com o mundo. E muitas vezes o último! Na ausência das famílias, a visão derradeira é pelos olhos de quem cuida. É um momento de se apegar a detalhes. Assim como nas ruas, no trabalho, no dia a dia, o sorriso escondido pelas máscaras foi substituído por um olhar acolhedor, também no momento de cuidar dos doentes o olhar é que leva a última esperança. Me remete a Helena Kolody:

“Quem é essa que me olha de tão longe, com olhos que foram meus?”

Em recente matéria veiculada no El País foi possível constatar que o Brasil foi responsável por um terço das mortes globais de profissionais de enfermagem com covid. Só na primeira semana deste ano foram 30 mortes. No total foram mais de 500 óbitos registrados de pessoas que estavam na linha de frente ao combate da doença, dentre enfermeiros, técnicos e auxiliares. E um número quase igual de médicos perderam a vida no combate ao vírus. São pessoas que sofrem na carne o impacto da irresponsabilidade daqueles que desprezam os cuidados e as recomendações da ciência.

É óbvio que a pandemia, de uma maneira ou de outra, traria efeitos avassaladores sobre as pessoas. Mas a politização do vírus e a irresponsabilidade no trato da questão nos levou ao caos. Os que se negam a cumprir as normas de segurança, quando infectados, dividirão os mesmos leitos, respiradores e UTIs com os que tiveram o infortúnio da infecção. Já há lugares no país onde o drama da escolha de Sofia passou a ser realidade. Os médicos têm que optar por quem receberá tratamento. É a própria negação do espírito da medicina.

Já passou da hora de nos indignarmos com a omissão criminosa ou com a ação irresponsável dos que negam a gravidade do que acontece no mundo. Se nem mesmo essa catástrofe sanitária despertou qualquer sentimento de solidariedade e responsabilidade em boa parte das pessoas e governantes não é possível esperar qualquer gesto civilizatório. Estamos claramente divididos entre a barbárie e o humanismo. Se tivermos a humildade de ver nos gestos de cada profissional da área de saúde um sinal de resistência solitária talvez nós possamos sentir a necessidade de dar um passo à frente. Sem heroísmo, mas com a coragem desses anônimos que, sem politizar, dão um sentido digno para a vida. Não é preciso mais do que isso.

Parece simples, mas é muito. Não nos escondermos na omissão diária e não permitir que sejamos tangidos feito gado para o abate. Enfim, depende um pouco de cada um de nós. É no olhar por trás das máscaras de cada profissional de saúde que devemos nos espelhar. E fazer nosso o compromisso de não nos submetermos aos bárbaros, não nos rendermos à mediocridade, não nos permitir virar um deles. Resistência no dia a dia, cada um dando um passo à frente. Com o pensamento em Ortega y Gasset:

“Caminhe lentamente, não se apresse, pois o único lugar ao qual tem que chegar é a si mesmo.”

Publicação Original: Poder 360

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