OLHOS NO ESPELHO

A vida só é possível reinventada.”

Cecília Meireles

 

 

Um dos efeitos deste momento trágico pelo qual passa o país é um risco de acomodação dos sentimentos contra a injustiça. Um governo com viés fascista, desumano, sem nenhuma empatia e que produz uma inesgotável quantidade de absurdos leva o cidadão a certa apatia.

 

É difícil resistir ao enxame de besteiras e posturas teratológicas que vêm, especialmente, por parte do Presidente da República. Dia a dia nós somos testados a enfrentar os mais diversos descalabros. É um verdadeiro atentado aos direitos mínimos do cidadão, ao respeito à vida, à dignidade e a uma chance de segurança social. A todo instante nós somos chamados a dar uma resposta aos frequentes ataques à estabilidade democrática. E a sociedade vai se tornando mais e mais insensível.

 

Nessa última semana, entre vários outros episódios, o mundo voltou os olhos ao Brasil para acompanhar mais uma chacina no Rio de Janeiro. Uma ação policial desastrada que deixou o saldo de 25 mortos. A tragédia da Vila Cruzeiro é a segunda maior na história do Estado, ficando atrás apenas do massacre de Jacarezinho, que teve 28 óbitos.

 

E, mais uma vez, a dor vira estatística. O luto transforma-se em números e as execuções seguem sem que o Estado possa dar uma resposta à barbárie institucionalizada. O único esboço de satisfação, cínico e vulgar, por parte das autoridades é: os executados ou eram pessoas com ficha criminal ou eram suspeitos de cometimento de crimes. A desfaçatez e a inversão absoluta de valores por parte do Estado, que deveria ser o responsável pela segurança da sociedade, são revoltantes.

 

A cultura de agressividade e desrespeito aos direitos do cidadão mais necessitado está a tal ponto enraigada que as forças de segurança sequer se preocupam em dar uma explicação. Talvez por não existir mesmo nenhuma resposta; ou porque a institucionalização da violência já é considerada uma realidade aceita pela maioria. O resultado de um governo fascista e que faz apologia ao armamento, à tortura, à guerra racial, à violência contra as mulheres e à comunidade LGBTQIA+ é exatamente o recrudescimento contra os invisíveis sociais.

 

Chega a ser desesperadora a situação do negro e do desprovido no Brasil. O empobrecimento do país, atolado em uma crise sem precedentes, levou um contingente de brasileiros a viver nas ruas sem emprego, sem esperança e sem perspectivas.

 

O sentido etimológico da palavra chacina é o esquartejamento do porco. E essa parece ser a melhor imagem para explicar essa tragédia: o miserável e o negro são tratados como animais a serem abatidos e esquartejados. E as mortes viram estatísticas que já não comovem ninguém.

 

É necessária uma reflexão sobre o momento pelo qual passa o país. É evidente que todos nós devemos cobrar uma punição dos agentes do Estado que, deliberadamente, executaram os cidadãos sob a pretensa desculpa de manter a ordem. Mas é preciso que possamos refletir sobre os rumos que o Brasil tomou. Urge que olhemos a sociedade que estamos criando. Quem afinal somos nós? Como profetizou o poeta Charles Bukowski: “O que é terrível não é a morte, mas as vidas que as pessoas vivem ou não vivem até suas mortes. A maioria das mortes das pessoas é um engano. Não sobrou nada para morrer.

 

A morte do Genivaldo, em uma câmara de gás improvisada dentro de uma viatura oficial, aconteceu diante de uma multidão de pessoas e à luz do dia. Uma tortura filmada e sem qualquer reação das pessoas para impedi-la. A barbárie consentida e a covardia como reação geral. O sadismo, a indiferença, o desprezo à vida humana e a completa falta de empatia: todos cúmplices! Viramos uma sociedade robotizada. No máximo, faremos um movimento, após a consumação do assassinato, para exigir punição aos agentes públicos responsáveis diretos pelo crime. E esse ato de cobrar uma penalidade nos dá a falsa sensação de estarmos cumprindo a obrigação como cidadão – resposta civilizatória. Exime-nos de qualquer culpa ou responsabilidade. Nossa hipocrisia recompensada até que outra tragédia se apresente.

 

De onde vem tanta indiferença? O que fez de nós esses seres insensíveis que desviam, a cada instante, o olhar da miséria alheia acumulada nas calçadas das ruas brasileiras? Não temos mais coragem de olhar nos olhos dos pais que carregam os filhos nas sarjetas. Não olhamos mais sequer para nossos olhos no espelho. É impossível nos reconhecermos na nossa indiferença cotidiana. Para sobreviver, deixamos de existir.

 

Muito triste o nosso destino. Um país que se curvou a um Presidente que faz a apologia da tortura abertamente, que distribui armas, que zomba das mulheres e dos negros, que se gaba de ser fascista, racista, misógino e homofóbico e que optou por exaltar a barbárie em sentido literal. Esse país só podia nos legar essa multidão de zumbis atordoados e sem nenhuma reação que justifique a nossa existência.

 

É urgente que voltemos a ter a coragem da indignação e a tentar ser agentes da nossa história, e não objetos desse enredo trágico que paralisa a sociedade brasileira. E é possível fazer isso dentro dos limites institucionais, afastando, pelo voto, essa realidade macabra.

 

Vamos trazer nosso Brasil de volta começando por nós mesmos. Ou nós nos damos essa chance ou continuaremos seguindo como párias em um país vazio, estranho e desumano; e, o pior, a viver essa solidão interior que passa a ser a nossa única companhia. Sempre me amparando em Clarice Lispector: “Sou como você me vê. Posso ser leve como uma brisa ou forte como uma ventania. Depende de quando e como você me vê passar.

 

Antônio Carlos de Almeida Castro, Kakay

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