PARA QUE NÃO SE REPITA

-Quem estará nas trincheiras ao teu lado?

-E isso importa?

-Mais do que a própria guerra

Ernest Hemingway

 

Ao longo de 40 anos de advocacia criminal, tendo tido a sorte de advogar para 4 Presidentes da República, mais de 80 governadores, dezenas de ministros e senadores, passei por muitas histórias que demonstram o quanto o Brasil mudou ultimamente. E para melhor. Muito melhor. Especialmente no que diz respeito ao amadurecimento das instituições. As gestões do Presidente Lula foram, em regra, pródigas em respeitar os poderes e o espírito republicano. Claro que há, e sempre haverá, exceções para confirmar a regra. Um caso específico, ocorrido nem há tanto tempo assim, pode ilustrar como evoluíram as relações entre os poderes constituídos.

 

Tramitava na Bahia um famoso inquérito que movimentava a política, os grandes empresários, o imaginário popular e a imprensa. Já era época de cobertura jornalística intensa nos casos de investigação de corrupção. Como tem que ser. Sem, é claro, prestigiar a espetacularização do processo penal e o endeusamento de mitos fabricados com objetivos políticos – como na era da República de Curitiba dos indigentes intelectuais Moro, Deltan e companhia.

 

Levei um grande empresário nacional, cuja presença na Polícia Federal, por si só, já movimentava a imprensa, para prestar depoimento. Ao final, perguntei ao delegado quando ele iria relatar o caso. Em tese, com a oitiva do maior empresário, o inquérito já poderia ser encerrado. Ele me respondeu, candidamente: “vou ouvir o governador e, em seguida, concluo”. À época, o governador era o Antônio Carlos Magalhães, uma lenda da política brasileira. Meu amigo, cliente e grande contador de casos. Nesse processo, o advogado dele era o mestre da advocacia criminal, Márcio Thomaz Bastos. Liguei para ele e relatei o que tinha ouvido. Ele falou com o ACM e disse para se preparar para o depoimento. Em seguida, entre perplexo e espantado, o Márcio me telefona e conta que o ACM havia telefonado ao ministro da Justiça com o insólito recado: “Tem um delegado federal em Salvador dizendo que vai me ouvir em um inquérito. Ele tem 4 horas para deixar os limites da Bahia ou minha polícia vai prendê-lo e vai desfilar com ele algemado no Pelourinho!”.

 

Eu, por conhecer o velho governador, não duvidei da história. No outro dia, em Brasília, curioso, fui à sede da Polícia Federal. Como quem não quer nada, indaguei àquela autoridade policial: “Como foi a oitiva do Governador?”. A resposta, seca e um pouco constrangida: “Não houve. Você acredita que fui transferido para o exterior? Virei adido na Embaixada”. Assim era o Brasil. Lembra-nos de Albert Camus: “O pior da peste não é que mata os corpos, mas que desnuda as almas, e esse espetáculo costuma ser horroroso”.

 

Relato esse caso para fazer uma reflexão sobre o avanço das relações entre os poderes e as instituições nos últimos anos. Com todos os excessos ocorridos, em várias operações e nas disputas entre os poderes antes do governo Bolsonaro, a regra era manter a institucionalidade. Mesmo com graves divergências, seguia-se um rito democrático.

 

A Operação Lava Jato, que tinha um claro propósito político, corrompeu o sistema de Justiça, instrumentalizou o Judiciário e prendeu Lula para eleger Bolsonaro. Mas, mesmo com todos os abusos, cumpriram-se os ditames constitucionais e a derrota da farsa lavajatista foi dentro das linhas da Constituição. Importante ressaltar que, em atenção aos poderes constituídos, ocorreram duas excrescências jurídicas gravíssimas: um impeachment sem crime – um golpe – da presidenta Dilma e uma prisão ilegal e política por 580 dias do presidente Lula.

 

Estamos há um ano do dia da infâmia, 8 de janeiro de 2023. Naquela fatídica data, milhares de bolsonaristas ensandecidos tomaram e depredaram as sedes dos Três Poderes seguindo um plano de romper com a institucionalidade e concretizar uma Ditadura no país. A intenção era forçar a implementação da GLO pelo governo, o que propiciaria a tomada do poder pelas forças armadas. Tudo adredemente preparado.

 

Não fosse a pronta reação do governo Lula – legitimamente eleito -, do Poder Judiciário, de parte do Legislativo e da sociedade civil, estaríamos, hoje, mergulhados no abismo das trevas obscurantistas. A imediata prisão em flagrante de mais de mil aspirantes a terroristas e a investigação que deve chegar nos financiadores, nos políticos, nos militares e na família Bolsonaro, colocaram um pé na porta do arbítrio e da barbárie.

 

Vamos acompanhar o desenrolar das apurações e cobrar para que todos, rigorosamente todos, civis ou militares, poderosos milionários e políticos, respondam da mesma maneira que estão culpabilizados os “buchas de canhão”, cada um de acordo com a sua responsabilidade.

 

Mas sobre o que não podemos deixar de refletir é como o país chegou a esse caos, a essa divisão perigosa e ridícula e a esse regime do medo e da discórdia pelo ódio inoculado pelos irresponsáveis bolsonaristas. Essa é uma questão a ser enfrentada.

 

Quando o ex-presidente Bolsonaro, desde o início do seu desgoverno, afrontava o Supremo Tribunal, ameaçava os ministros da Corte e insuflava o povo contra o Judiciário, as pessoas se calavam e até aplaudiam. A quebra deliberada do respeito aos poderes e aos seus representantes está na origem de todo o desastre que se abateu sobre o Brasil.

 

As causas são várias: a omissão da sociedade organizada e de algumas das instituições representativas, a cooptação de boa parte da mídia tradicional e o apoio de setores da economia – fingiam não ver que o governo Bolsonaro se respaldava em mentiras, abusos, entreguismo, políticas de ódio, machistas, racistas, misóginas, enfim, que eles não se escondiam. Eram orgulhosos da ignorância que jactavam. E foram quebrando, pouco a pouco, o respeito institucional que preside um Estado democrático de direito e atacando balizas fundamentais de civilidade e respeito.

 

Devemos, realmente, estar atentos para o espírito da sessão histórica de 8 de janeiro, um ano depois da infâmia, que alertou para a imperiosa necessidade de responsabilizar e punir absolutamente todos os que participaram, na medida das suas culpabilidades, e com pleno respeito à presunção de inocência e demais garantias constitucionais, aquelas mesmas antes renegadas pelos golpistas-fascistas. Vamos exigir que não haja impunidade, nem apaziguamento.

 

Porém, vamos voltar a fazer valer as instituições e a independência dos poderes constituídos e a valorizar a sociedade organizada. Somente com a repreensão exemplar e dentro das regras da Constituição, respeitando todos os direitos, poderemos dar uma resposta adequada aos golpistas e evitar que tudo ocorra de novo.

 

Lembrando-nos do grande Miguel Torga: “O mal de quem quer apagar as estrelas é não se lembrar que não é com candeias que se ilumina a vida”.

 

Antônio Carlos de Almeida Castro, Kakay

 

Confiro o artigo publicado no Poder 360 no dia 12 de janeiro.

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