Passando a limpo
“… e em qualquer fresta estava a liberdade.”
Miguel Torga
Com pouco mais de 100 dias de governo, é fácil notar que os ares mudaram. A receptividade que o Presidente Lula encontrou mundo afora, sendo tratado como um estadista, dá a dimensão do vazio que o Brasil ocupava no cenário internacional. O desgoverno de Bolsonaro isolou o país, tornando-nos párias em um tempo de globalização. Todos tinham certa pena dos vexames bolsonaristas e boa parte dos brasileiros sentia enorme vergonha do que representava aquela gestão medíocre e fascista. Em pouco tempo, Lula foi escolhido pela Times como um dos líderes mais influentes do planeta. O país voltou ao G7 e as relações internacionais passam a dar ao Brasil o papel que ele deve ocupar na complexa geopolítica entre os países que ditam as regras.
Internamente, estamos em um momento delicado e extremamente importante. Com a derrota do fascista nas urnas, não podemos ter a ilusão de que ganhamos e extirpamos o bolsonarismo. Embora tenhamos tido com o Lula uma espetacular vitória, vencendo um Presidente sem escrúpulos e que usou todo o aparato do cargo que ocupava, os 4 anos do último governo fizeram com que as garras da ultradireita fossem fincadas em boa parcela do povo brasileiro. Não podemos nos esquecer de que, durante o período em que Bolsonaro esteve na Presidência, boa parte do Congresso Nacional foi cooptado e não honrou a necessária independência entre os Poderes. Sem contar o apoio da grande mídia e de grande parte da elite dinheirista e oportunista. Repito, pela milésima vez: foi o Poder Judiciário que conseguiu manter a institucionalidade e nos livrou do abismo da Ditadura.
Agora, mais uma vez, o Judiciário é chamado a cumprir a Constituição. Deve começar a julgar, nesta semana, o recebimento das denúncias criminais contra parte dos responsáveis pela tentativa de golpe no dia 8 de janeiro. A prisão de quase 1600 pessoas, logo após o dia da infâmia, inclusive a do ex-ministro da Justiça, e a investigação contra o ex-Presidente Bolsonaro, os vários militares da cúpula, os financiadores e os empresários dão o tom exato no sentido que, desta vez, serão responsabilizados criminalmente os que atentaram contra a Democracia e contra as instituições. Não podemos repetir o erro da época da Ditadura, quando não foram processados e condenados os assassinos e torturadores. Tivéssemos agido com o rigor democrático, Bolsonaro não teria ganhado espaço na política e nem governado o país.
Por isso, estamos com os olhos voltados especialmente para 2 temas: o julgamento criminal dos golpistas presos e o processo de inelegibilidade do ex-Presidente. O próprio Ministério Público Eleitoral, sinal dos novos ares, deu parecer contrário ao Bolsonaro. Confesso que sempre tive dificuldades de dar tal poder à Justiça Eleitoral, impedindo que o cidadão possa se submeter ao escrutínio popular. Mas é o preço que se paga para viver numa Democracia, e é módico. Parece óbvio que o fato de o tornar inelegível não terá influência nas apurações que estão em curso. Para restabelecer a normalidade democrática, faz-se necessário cumprir as leis e a Constituição. Sem perseguir, nem proteger. Como deve ser em um país republicano e democrático.
E é bom lembrar que o Estado, em um ambiente livre e humano, tem muitas mãos e olhos. É tempo de aprofundar, paralelamente, as investigações sobre todos os que usurparam o poder, os que corromperam o sistema de Justiça e os que se apropriaram indevidamente da soberania nacional. Preservando todos os direitos constitucionais, especialmente os da ampla defesa, do contraditório e da presunção de inocência, há muito espaço para os Moros, Deltans e que tais. Com um olho na Constituição e outro na Justiça.
Como disse Mário Quintana, “Não faças da tua vida um rascunho. Poderás não ter tempo de passá-la a limpo”.
Antônio Carlos de Almeida Castro, Kakay