QUEM MANDOU MATAR O RIO DE JANEIRO?

QUEM MANDOU MATAR O RIO DE JANEIRO?

“Sei ter o pasmo essencial que tem uma criança se, ao nascer, reparasse que nascera deveras. Sinto-me nascido a cada momento para a eterna novidade do Mundo.”

Fernando Pessoa, na pessoa de Alberto Caeiro

Eu, às vezes, tenho vontade de nunca ter ido a Paris só para ter, novamente, o impacto que senti quando vi a cidade pela primeira vez. Aquele doce aconchego que me deu a sensação de voltar quase ao líquido que nos envolve na gestação. Uma mistura de espanto e ilusão de que já estive ali. Mais, até. De que sou dali, criado e ambientado naquela cidade que tem alma e luz. 

O Rio Sena desliza como se fosse uma veia a fluir silenciosamente e parece nos acompanhar por onde andamos. Não sei como, mas, esporadicamente, eu vejo o Sena, noite alta, sair do seu leito e se esgueirar pelas vielas da L’île Saint-Louis, ou me acompanhar em Saint-Germain-des-Prés. Nessas horas, a gente nunca pergunta como é possível. Na verdade, o ideal mesmo é nunca questionar nada. Só sentir aquele pasmo essencial referido por Pessoa. 

Tivesse o mágico Fernando Pessoa estado a vida toda ao lado do Sena, e não do Tejo, seus poemas seriam outros? Penso que não, pois, afinal, ele nos contou que o Tejo não era mais bonito que o rio da aldeia dele, porque o Tejo não era o rio da aldeia dele. Assim seria com o Sena. Talvez, no máximo, ele faria o Sena desaguar no Tejo e, assim mesmo, juntos e misturados, as águas dos dois rios nos levariam a um mundo mágico no qual só a poesia existiria.

Como que por uma questão de sobrevivência, não de fuga, vejo-me falando de Paris no dia em que respondem à pergunta que ecoou mundo afora por 6 anos: “Quem mandou matar Marielle?”. E eu, acompanhando atento o desenrolar das investigações, lendo o relatório, o parecer da PGR e o decreto de prisão, quedo-me perplexo a perguntar: “Quem fez isso com o Rio de Janeiro?”. 

Observar a mudança nos rostos da irmã, da mãe e do Freixo, no momento em que anunciaram o envolvimento do ex-chefe de polícia do Rio e, à época, chefe da delegacia de homicídio, demonstra o nível de perplexidade que o Rio de Janeiro sempre nos reserva. O que deveria ser um alívio vem acompanhado de um susto e uma indignação sem fim. A investigação aponta que Lessa, um dos executores, só aceitou a incumbência de matar uma vereadora por ter tido a promessa de que o crime seria acobertado por quem teria a obrigação de investigá-lo. 

O relatório indica que o delegado Rivaldo orientou a ação covarde e criminosa desde o início, inclusive dizendo sobre o melhor local para o crime. E ele, representando o Estado, era quem acolhia a família, prometia investigar e lhes assegurava que tudo seria resolvido. É o Estado que mata, que mente, que protege o crime e que, com a crença na impunidade, age no fio da navalha, como que a brincar com a vida. Sentem-se donos da vida no Estado do Rio de Janeiro. Dados indicam que 65% do seu território é dominado pela milícia. É o Estado a serviço do crime. 

Lembro-me da primeira vez que fui ao Rio de Janeiro. Como bom mineiro, não pude conter a emoção. Assim como não me esqueço quando, na Câmara, da tribuna que já havia sido ocupada por Marielle, discursei ao receber o título de cidadão honorário da cidade e do Estado, com a Medalha Tiradentes. Ali, da tribuna com a placa homenageando-a, falei que me sentia como um rio que vinha se esgueirando pelas montanhas de Minas para desaguar no mar. 

E é com o peito cheio de indignação que ainda acredito no Rio de Janeiro. Todos nós sabemos o tanto que a milícia bolsonarista sufoca e estrangula, mas quem, como eu, permite-se banhar no mar, encontra forças para enfrentar esse câncer que matou Marielle, Anderson e tantos outros, porém não matou a esperança em um Rio mais justo e mais igual para todos. Está na hora de enfrentar quem matou o Rio de Janeiro.

“Por que existem uns felizes e outros que sofrem tanto? Nascemos do mesmo jeito, moramos no mesmo canto. Quem foi temperar o choro e acabou salgando o pranto?”

Ariano Suassuna, recitando Leandro Gomes de Barros

Antônio Carlos de Almeida Castro, Kakay

O artigo foi publicado por Kakay em 29/03/2024

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