SENA, O RIO QUE DESÁGUA EM MIM
“Errar é humano. Flanar é parisiense.”
Victor Hugo, Os Miseráveis, 1862
No meio do cerrado, em Minas Gerais, há um rio que se chama Arrependido. Conta a lenda que ele corria em um sentido e, arrependido dos cursos da vida, de repente, mudou de direção. Eu tenho observado muito o rio Sena, em Paris. Sempre que corro à sua borda, pelas manhãs, acompanho o forte curso rumo ao mar. Poderoso. Impetuoso. Quase revolto. Mas, curioso, às vezes, madrugada alta, quando volto para casa acompanhado de um bordeaux, vejo que ele muda o curso e corre ao contrário. Doce. Insinuante. Deliciosamente instigante. Nessas horas, sinto que o rio Sena deságua em mim e não no mar. Não o vejo arrependido. Mágico, talvez.
Assim tem sido Paris, que nos acolhe a todos. O fluxo de turistas – eu, inclusive – não desumanizou a cidade. Há Paris para todos os gostos. Dos mistérios que nos encantam e quase assustam, até as obviedades que nos envolvem e nos fazem felizes de novo. Muitas vezes, renovando o mesmo espanto.
Gosto de dizer, e já escrevi mais de uma vez, que o que é bom deve ser reescrito: eu gostaria de nunca ter ido a Paris só para sentir aquele “pasmo essencial” que teria uma criança e foi descrito por Pessoa: “se, ao nascer, reparasse que nascera deveras.”
Queria poder ver Paris, de novo, pela primeira vez.
Enquanto não consigo isso, sigo vivendo todas as “Paris” possíveis.
A contemplativa, dos cafés e dos bares, encastelados nos boulevards onde a vida insiste em deslizar modorrenta enquanto um café esfria no copo, ou um vinho ajuda o tempo a passar. Nessas horas, há sempre um livro, sem WhatsApp, a lembrar que a França ainda resiste.
A frenética, que insiste em acompanhar o quê de neurótico e burocrático que habita o francês parisiense. Ensimesmado. Desconfiado. Que adora uma fila e é capaz de recorrer ao Judiciário por qualquer pendência boba e insignificante. Reclamar é quase uma instituição aqui. Para reativar a TV por assinatura, saiba que terá saudades da burocracia brasileira.
A romântica, que nos faz sonhar com os filmes e com os livros franceses que nos embalaram. E a sorte de ter sentado ao lado da Catherine Deneuve em um voo Paris-Montpellier. Linda. Simples. Francesa. E que nos fez companhia em milhares de tardes e noites sentados no Café de Flore, tentando, desesperadamente, entender a alma humana. Em vão.
E, agora, a Paris olímpica. Todos os monumentos sendo reformados, a cidade parada. Estive aqui nos preparativos dos 200 anos da Revolução. A cidade parou e voltou luminosa. Com Paris iluminada, nunca foi tão romântico andar pelo Sena de barco.
Estamos no momento do caos da preparação. Ruas fechadas e muito trabalho. A Prefeita disse que investiu 3 bilhões de euros e que o rio Sena estará apto para natação. Podem ter certeza de que, não sei se rumo ao mar ou a mim mesmo, irei mergulhar nessas águas, tortuosas ou serenas, e vou me permitir viver essa Paris que sempre nos surpreende e nos acolhe. E serei feliz só por estar aqui.
“Nós sempre teremos Paris.”
Rick Blaine – H. Bogart, Casablanca, 1942
Antônio Carlos de Almeida Castro, Kakay
O texto foi escrito por Kakay ao Poder 360.