SOB O JUGO DO FASCISMO

Estou hoje vencido, como se soubesse a verdade.

Estou hoje lúcido, como se estivesse para morrer.

Falhei em tudo.

Como não fiz propósito nenhum, talvez tudo fosse nada.

Fernando Pessoa, poema Tabacaria

 

Os sinais da degradação de uma sociedade podem ser perceptíveis, com certa facilidade, para quem estiver disposto a ver. O simples olhar não revela, muitas vezes, o tamanho do fosso e a complexidade da trama que nos enreda. Ao longo da vida, todos nós, ou boa parte de nós, lemos, estudamos e observamos a gravidade destrutiva de um governo fascista nas mais diversas sociedades e na formação humanista das pessoas. Porém, é muito cruel e diferente viver os efeitos no próprio dia a dia. É avassalador! E esses indicativos se escondem, mas se mostram, às vezes de maneira sutil e insinuosa; depois, eles vêm de maneira direta e atrevida. O Brasil, hoje, é produto de um governo fascista, corrupto, sem limites, sem escrúpulos e que ainda dividiu a sociedade.

 

A estratégia desse grupo medíocre é desestruturar as bases sociais que sustentavam a sociedade, fazendo um desmonte deliberado das principais políticas, tais como saúde, educação, cultura e segurança, enfim, tudo que significar qualquer avanço civilizatório. O que sustenta a mediocridade é o caos.  E, como não existe absolutamente nenhuma preocupação com o coletivo, a terra arrasada serve aos propósitos atualmente explicitados dos que governam o país. Recorro-me à Cecília Meireles, no poema Das Sentenças:

 

Já vem o peso da morte,

com seus rubros cadafalsos,

com suas cordas potentes,

com seus sinistros machados,

com seus postes infamantes

para os corpos em pedaços.

 

A desfaçatez, a falta de empatia e o cinismo são cultuados como maneira de governar. Quando se explicitou, em todo o mundo, que o Brasil tem hoje espantosos 33 milhões de brasileiros passando fome, a resposta de um dos filhos do Presidente da República foi a de que “ninguém passa fome com 400 reais por mês”. Uma vergonha!  Mas isso é dito com a empáfia de quem repete a história francesa: “o povo não tem pão, que coma brioche”. A guilhotina deveria servir como sinal.

 

Na verdade, o autoritarismo dividiu a sociedade brasileira. Os métodos toscos, vulgares e agressivos do Chefe da nação deram corda para um grande número de fascistóides enrustidos, que resolveram sair do armário. E, claro, juntos com os saqueadores habituais do país que tapam os narizes, mas não largam as tetas; alguns nem disfarçam e lambuzam-se mesmo. O show de horrores nos surpreende a cada dia.

 

Os instintos mais perversos se revelam. Depois de vivenciarmos as divisões familiares, as rupturas de amizades antigas e a desconfiança em quem julgávamos parceiros na vida, começamos a, cada vez mais, viver um festival de iniquidades. Tudo fruto desse ideário fascista que rege o país. É sempre bom lembrar o alerta do grande Bertolt Brecht: “A cadela do fascismo está sempre no cio.

 

Com lastro em um mundo no qual tudo é possível, uma juíza resolve impedir uma criança de quase 11 anos, grávida em razão de um estupro, de abortar, adotando como um dos argumentos a necessidade de ouvir “o pai”, ou seja, o próprio estuprador! A magistrada abandonou a lei e os princípios minimamente humanistas, bem como optou pela barbárie, valendo-se da chancela do Poder Judiciário.

 

No mesmo dia, um jovem que havia subtraído um celular, ao ser libertado na audiência de custódia, fez um apelo dramático e comovente à juíza: “deixa eu ficar preso até depois da janta. Se eu sair antes posso desmaiar de fome nas ruas”. Meu Deus, a que ponto chegamos! Um menino, que já renunciou a qualquer sonho e esperança, resolve abdicar da liberdade momentaneamente em troca de um prato de comida. Dói. A voz serena e baixa, quase um fiapo, nos faz ter a certeza de que a humilhação já levou parte desse garoto. E em cada jovem perdido para o obscurantismo perdemos também um pedaço de nós.

 

Seguindo com os absurdos, ainda naquele mesmo dia, a Câmara Municipal de Curitiba resolveu cassar o mandato e os direitos políticos, por 8 anos, de um jovem negro que ousou ser eleito vereador numa sociedade predominantemente preconceituosa. De origem humilde, conseguiu se formar em Direito e, parado numa blitz de rua, foi preso com agressividade ao mostrar, orgulhoso, a carteira da OAB recém obtida. O policial teria dito que a carteira seria falsa. Como ousa um negro ser político e advogado, ainda mais em uma cidade com destino definido para ser branca, direitinha e direitaça? E o atrevimento do vereador, ao ocupar uma igreja, tradicional templo de acolhimento dos negros, mesmo que depois da missa? O manifesto era para o questionar o assassinato cruel, exatamente por racismo, do congolês Moïse. O Padre não reclamou e a Cúria perdoou, mas o preconceito é uma das bases do fascismo, que não pode voltar atrás; precisa mostrar força e poder.

 

As trapalhadas definem esses grupos que ostentam orgulhosos o título de donos do Brasil. Sem formação republicana e tendo como estratégia aprofundar o fosso com qualquer grupo político de viés humanitário, permitem não ter coerência alguma. É o poder como contorno, o retrato do país que querem e estão forjando a fórceps.

 

Ainda recentemente, foi preso o ex-ministro da Educação, em razão de supostas transações com dois pastores que falavam em nome de Deus – corrupção, tráfico de influência e outros tipos penais. A primeira providência do governo foi tornar sigiloso o acesso ao trânsito dos tais pastores no Palácio do Planalto e, por consequência, à relação com o Senhor Presidente e familiares bastante próximos. É a degradação, o debacle e o deboche.

 

Ainda, para coroar a sanha fascista, agressiva, misógina e violenta, um Procurador resolve espancar barbaramente, na frente de vários colegas de trabalho, uma Procuradora-Chefe, com violentas agressões físicas e verbais.

 

Poderíamos relatar vários exemplos do que se transformou a sociedade brasileira sob o jugo do fascismo. Contudo, prefiro me ater a esses fatos e ressaltar que o mais insidioso e perigoso é a tentativa de incutir no brasileiro o germe do fascismo. Não são só os exemplos clamorosos que nos acuam, nos espantam. O mais grave é a nossa divisão enquanto nação. É ter que fracionar nosso tempo entre a esperança de voltar a ser feliz de novo e continuar tendo essa pústula, cultor da morte e da tortura, financiador de fake news e profundo inimigo da democracia. Tudo isso depois de sermos expostos ao ridículo, com o bárbaro assassinato do Dom Phillips e do Bruno Pereira, mostrando ao mundo que perdemos a soberania na Amazônia.

 

 

Não vamos ampliar nossa dor, nosso desespero e nossa infinita tristeza. Vamos tentar parar o tempo e dar um basta nessa praga que infestou o Brasil. Desnudados, eles estão expostos com as vísceras abertas. É um cheiro ruim que vem do esgoto no qual essas figuras se escondiam. Vamos abrir as janelas, as portas, os corações e dar um banho de sol e de civilidade e mandar para as profundezas do atraso essas forças malignas, de onde não deveriam nunca ter saído. Lembremo-nos de Rainer Maria Rilke, no poema Outono:

 

Todos caímos. Cai aquela mão. E olha as outras: há quedas também.

No entanto há alguém que, com suaves mãos, todas as quedas detém.

 

Antônio Carlos de Almeida Castro, Kakay

Publicado no Poder 360. 

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