UM DEFEITO DE CARÁTER
“Em cada prece, em cada sonho, nêga
Eu te sinto, nêga, seja onde for
Em cada canto, em cada sonho, nêgo
Eu te cuido, nêgo cá de onde estou.”
Samba-Enredo da Portela 2024: Um defeito de Cor
Às vezes, a impressão que fica de certos absurdos é que, efetivamente, a sociedade carrega com ela um defeito de cor. Um racismo estruturado e invencível. Nesta semana, um senhor branco, de classe média alta, em Porto Alegre, sentiu-se ofendido porque um grupo de motoboys estava na rua conversando enquanto aguardava serviço. O agressor, homem branco e forte, achou-se no direito de, covardemente, esfaquear o pescoço do jovem negro que estava trabalhando. Sem nenhuma discussão.
Golpeou-o porque pensou estar no direito de tentar matar o menino negro que ousava ser negro. E que ainda sorria. Não houve nenhum motivo para dar ensejo à violenta agressão. O homem branco deve ter cogitado: quem são esses negros para ficarem sorrindo e existindo aqui perto de um homem branco? A tentativa de assassinato à luz do dia e na frente de várias pessoas já demonstraria, por si só, um grave problema a ser entendido. Um crime, aparentemente, sem motivação. Sem subterfúgio. Sem álibi. Sem sequer tentar esconder.
Mas tão estapafúrdia quanto a agressão gratuita foi a postura dos agentes da Brigada Militar do Rio Grande do Sul. Seguindo a lógica preconceituosa, os policiais, no meio de várias testemunhas, não tiveram dúvidas e se envolveram na abordagem tentando imobilizar o negro. Parecia um show de horror. Imobilizaram e prenderam a vítima, negra, e a jogaram na parte de trás do camburão. Diante das pessoas incrédulas que protestavam e gritavam que era um quadro de racismo. A vítima, esfaqueada, estava sendo capturada com violência; o autor da facada, rico e branco, pôde trocar de roupa, esconder a faca e sentar-se na parte da frente do carro de polícia.
Dentro da gaiola do camburão, onde arremessaram o motoboy, não cabem muitos sonhos. É um lugar propício para alimentar ódios, frustrações, raivas e lágrimas de choro e de indignação. É um espaço conveniente para a sociedade racista, misógina e violenta dar um recado aos negros e pobres que se atrevem a querer ser iguais. Deixam claro que, mesmo vítimas, mesmo esfaqueadas e humilhadas, esse é o local reservado aos invisíveis sociais. Não se atrevam a sorrir, não conversem alto e não cometam a heresia de tentar ser feliz. O seu espaço de fala, “seu negro”, é a gaiola do camburão, de onde sua voz nunca será ouvida.
A inversão de valores é abissal. Uma agressão covarde merece o apoio de policiais que foram treinados a perseguir negros, a prender negros, a abordar negros nas ruas, a achincalhar negros nas blitzes e a humilhá-los. Hoje, outros são os ferros em brasa que marcam os homens e as mulheres de cor negra. O sinal que ainda usam para queimar a dignidade, a honra e a alegria. E o fazem à luz do dia, orgulhosos da própria imbecilidade.
Esse é o contorno exato de uma sociedade doente. Uma sociedade que exalta a tortura, que faz chacota das mulheres, que tenta ridicularizar os quilombolas e que inoculou o ódio e a violência nas pessoas. A ultradireita gostou de usar o chicote e o preconceito é a base de tantos abusos. Para combater tanta infâmia, a indignação é a nossa voz.
Vamos fazer eco com os que não se submetem a essa violência. Para cada agressão de um branco covarde, que seja acesa, em cada um de nós, a chama da imediata retorsão. Já passou muito da hora de simplesmente ouvir e ver a agressividade tomar as rédeas. Para cada gesto de dominação, que nosso grito seja de liberdade e de igualdade.
Remeto-me a Maya Angelou, no poema Ainda assim eu me levanto:
“Você pode me fuzilar com suas palavras,
Você pode me cortar com seus olhos,
Você pode me matar com seu ódio,
Mas ainda, como o ar, eu vou me levantar.”
Antônio Carlos de Almeida Castro, Kakay