CÚMPLICES! SOMOS TODOS CÚMPLICES.

“É preciso que haja algum respeito, ao menos um esboço ou a dignidade humana se afirmará a machadadas.”

Torquato Neto, Poema do aviso final

Hoje, a impressão que nos domina é a de que o que ainda nos causa indignação no massacre em Gaza não é mais a morte, a fome e o estupro. Parece que a enxurrada de imagens de crianças dilaceradas, com seus corpos sem membros e seus olhares tristes e perdidos, provocou um efeito de introjetar, em cada um de nós, uma nuvem espessa que nos cega, um muro sólido que não nos deixa caminhar ou agir e um vácuo de ar que nos sufoca e rouba nossa voz. Estamos paralisados.

A notícia da ONU, num relatório de 23 páginas, dando conta dos estupros cometidos pelo grupo terrorista Hamas no covarde ataque do dia 7 de outubro confunde-se, na mídia, com os atos bárbaros praticados pelos asseclas do assassino Netanyahu em Rafah. Uma guerra na qual o genocídio segue sua cartilha de massacre e extermínio de um povo. Parece que a capacidade de absorver tanta crueldade aniquilou a condição humana no acompanhamento dessa tragédia. O que ainda nos provoca alguma aversão e nos lembra que somos humanos é um ou outro texto que consegue falar por nós e nos emocionar. No mais, vivemos em permanente fuga. 

Essa é não somente a realidade do genocídio em Gaza. Também nos acovardamos, como forma de nos proteger, no nosso dia a dia. Foi assim na pandemia quando, em todo começo da noite, era anunciada a morte de mais de 3000 pessoas pela covid e pelo agir criminoso do grupo assassino do Bolsonaro. Nós escutávamos, perplexos e com medo, a morte nos rondar. Podíamos sentir sua presença. Até na dor de muitos que eram próximos. Mas nos quedávamos inertes. 

Saímos da pandemia e a vida foi tentando voltar à normalidade. Os responsáveis pelos mais de 600 mil óbitos não foram punidos. A morte venceu e inoculou uma insensibilidade que adormeceu todos. Quem sobreviveu quer viver. Remoer o passado é, para muitos, uma continuidade da morte. Ignoramos Clarice Lispector, na Hora da Estrela: “porque há o direito ao grito. Então eu grito”.

Na verdade, parece que fomos todos anestesiados para esperar e aguardar os eventos espetaculares: pandemia, guerra e genocídio. Há uma preparação diária e silenciosa que visa a nos entorpecer e a nos preparar. 

Quem mora nas grandes cidades tem que se “acostumar” com milhares de pessoas, inclusive mulheres e crianças, dormindo nas ruas. Cerca de 330 mil brasileiros estão morando ao relento, nas marquises e nos viadutos. Em regra, desviamos o olhar daquele que pede uma ajuda com a justificativa de que estamos atrasados para o trabalho, para o jantar ou para o futebol.  Se andarmos mais um pouco, passaremos perto das penitenciárias abarrotadas, nas quais o Estado se ocupa de não garantir minimamente a dignidade dos detentos. São celas onde cidadãos vivem amontoados, sem espaço sequer para dormir, comendo lavagem e sem nenhuma perspectiva. 

Parece que o dia a dia é para nos dar estrutura para aguentarmos a morte, com requinte de crueldade, de pessoas em uma fila humanitária em Gaza para tentar conseguir água e comida. É a banalização da violência. Por paradoxal que possa parecer, não fosse a rotina desumana nas nossas vidas, nós não aguentaríamos acompanhar esse genocídio televisionado ao vivo. 

A guerra da Ucrânia parece ter deixado de existir. Os milhões de refugiados, sem casa e sem esperança, já cederam lugar a outras catástrofes. Os estupros em massa só mudaram de país. A fila anda e a desumanização tem que seguir nos tornando, todos, insensíveis e, por que não, cúmplices. É uma cumplicidade que acorrenta e impede de tentar sair deste círculo invisível de giz que nos aprisiona. No meio da chuva de bombas que cai a milhares de quilômetros, mas que escutamos daqui o cotidiano nos ronda com desgraças diversas. 

Foi se fiando nesse torpor coletivo que os fascistas bolsonaristas tentaram o golpe. Com o desnudar das teias que os golpistas armaram, nós hoje temos a certeza de que, por muito pouco, não fomos tragados à escuridão da Ditadura – que se anunciava cruel e bárbara, a contar pelo ídolo que é a referência do ex-presidente Bolsonaro. Um homem que tem como guia um torturador sanguinário, como Brilhante Ustra, certamente daria aos seus adversários um destino de dor e de sofrimento. 

As peças vão se encaixando e a única saída é a responsabilização criminal dos golpistas. Dificilmente vai ocorrer um cipoal de delitos gravíssimos com tanta prova de materialidade e autoria. O torpor atingiu, também, os responsáveis pelo golpe. Sentiam-se imunes a qualquer ação por parte do Estado. Eles julgavam ser o Estado. 

Resta-nos impedir que toda essa insanidade que povoa o mundo produza aqui os efeitos deletérios da omissão, da cumplicidade e do silêncio. Já perdemos parte do humano que existe em cada um de nós pelos horrores da guerra, pela banalização da morte de mulheres e crianças bem como pelos invisíveis sociais que ocupam as ruas e os presídios. Mas, até para fazer sentido continuar, é preciso cuidar para que um rasgo de dignidade nos sustente. Um enfrentamento pela Democracia pode ser, pelo menos, uma tábua de salvação. Ou uma maneira de acordar.

Remeto-me ao imortal Rui Barbosa: 

“De tanto ver triunfar as nulidades; de tanto ver prosperar a desonra, de tanto ver crescer a injustiça. De tanto ver agigantarem-se os poderes nas mãos dos maus, o homem chega a desanimar-se da virtude, a rir-se da honra e a ter vergonha de ser honesto.”

Antônio Carlos de Almeida Castro, Kakay

Texto publicado no Poder 360 em 08 de março de 2024

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