Quase tarde, mas ainda em tempo

“O correr da vida embrulha tudo. A vida é assim: esquenta e esfria, Aperta e daí afrouxa, Sossega e depois desinquieta. O que ela quer da gente é coragem.”

Guimarães Rosa

 

Existe no ar uma angústia sofrida que quase supera a dor, o desespero até, das milhares de mortes. Que se equipara ao asco que provoca o descaso governamental e os abusos de um governo que cultua a morte. Todas essas dores são nossas, não são de mais ninguém, e cada um sofre à sua maneira. Mas é necessário ser solidário também na dor.

Ao acompanhar a condução criminosa da crise, o que nos inquieta, nos aniquila e nos leva à profunda indignação é a absoluta falta de empatia demonstrada por uma esmagadora maioria da tal elite brasileira, dos políticos e de várias pessoas com as quais convivemos no dia a dia. É o descaso pelo caos no qual estamos enjaulados. Hoje, manter alguma lucidez é uma opção ora de subsistência, ora de fuga.

Por isso, ao lado da dor que a doença naturalmente provoca, existe a revolta que nos invade com a constatação da apatia cúmplice de boa parte das pessoas. Não é mais possível aceitar pacificamente essa dura realidade: quem não se posiciona contra esse governo, responsável direto pela criminosa condução da crise sanitária, também tem responsabilidade.

Não é necessário comparar o Brasil com a Europa, ou com países mais desenvolvidos, para ver o tamanho da tragédia. Basta fazer isso com estados que têm, aproximadamente, a mesma população. É preciso apenas ter olhos para enxergar : 1 – Indonésia: 270 milhões de habitantes, 54.662 mortes pela covid; 2 – Paquistão: 216 milhões de habitantes, 22.007 mortos; 3 – Nigéria: 201 milhões de habitantes, 2.117 mortos; 4 – Bangladesh: 163 milhões de habitantes, 13.548 mortos; 5 – Brasil: 211 milhões de habitantes, mais de 500 mil mortes.

Há um consenso no mundo inteiro que o governo brasileiro é fascista, genocida e assassino. Quando levantávamos tais questões meses atrás, ainda havia alguma crítica digna de ser rebatida, pois, para muitos, era uma politização da crise. Mas hoje a realidade é inquestionável e não se trata de posicionamento político, não há que se falar em esquerda, centro ou direita. A polarização é entre humanidade e barbárie. E a opção está posta.

Temos que ter consciência dessa dura realidade, quem apoia esse governo tem que ser responsabilizado, pelo menos com o solene desprezo. E é imperioso demonstrar isso. Não podemos conviver com o fascismo que corrói a sociedade brasileira. Para não sermos condescendentes, precisamos demonstrar para todos ao nosso redor. Não há como repudiar o fascismo e sentar à mesa com seus apoiadores. É duro, é contrário à índole do brasileiro, mas o momento é de rara gravidade.

Muitas vezes, um gesto simples vale mais do que diversos discursos. Um sinal, quase imperceptível, de nojo, de descrença ou de repulsa que a gente faz àquele que, até então, era próximo ou continua próximo pode levar a alguma reflexão. Se não for compreendido o sinal, pela sutileza amorosa do gesto, fale alto, grite, bata na mesa, cancele no WhatsApp, mas deixe claro. É hora de nos posicionarmos, todos.

É impossível que sejamos obrigados a conviver com a maneira repugnante com que esses facínoras tratam o país e ainda tenhamos que, educadamente, suportar a hipocrisia diária dos seus apoiadores. Vamos nos dar o direito de nos libertar das amarras que vínculos afetivos, familiares, profissionais e até de educação nos impõem. É necessário que sejamos íntegros e inteiros. Ninguém sabe para onde a humanidade vai caminhar depois dessa hecatombe.

Na verdade, o vírus insiste em voltar e, insidiosamente, mostra sua força perversa e traiçoeira. Confiar na ciência parece ser nossa única esperança. Mas temos que reconhecer que os responsáveis sérios pelo enfrentamento estão exaustos. Aqueles que permanecem à frente da batalha, de maneira heroica e incansável, merecem nossa irrestrita solidariedade. E uma maneira de demonstrar apoio é dizendo não aos cúmplices negacionistas.

Façamos isso pelo país, mas também por nós. A base de toda relação tem que ser a dignidade da pessoa, o respeito. Mas, na convivência com os bárbaros, assumidos ou disfarçados, hipócritas, ser digno é ter a coragem de nos posicionar. A hora é essa e já é quase tarde demais. A resistência tem várias faces. Vá para a rua vestido de verde amarelo, para registrar que eles não podem roubar nossas cores. Ou vá de vermelho, de preto. Fique em casa em respeito ao isolamento. Apareça na janela. Escreva algo no WhatsApp. Ligue para alguém. Enfim, encontre a sua forma de dizer não à barbárie e ao fascismo. Permita-se.

Ser feliz também é uma maneira de resistir. E, para os que escolheram ficar ao lado da humanidade, ser feliz, mesmo na tragédia, é ser solidário e ter empatia, é olhar o outro com os olhos dele, é também dizer não aos que escolherem apoiar a ignorância. Depende de cada um de nós e, pode ter certeza, seremos cobrados pela omissão.

Tudo nos remete ao Padre Antônio Vieira:

“Sabei cristãos, sabei príncipes, sabei ministros, que se vos há de pedir estreita conta do que fizestes; mas muito mais estreita do que deixastes de fazer. Pelo que fizeram, se hão de condenar muitos, pelo que não fizeram, todos… a omissão é um pecado que se faz não fazendo.”

Publicação Original: O Dia

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