CONSEGUE DESMAIAR? DESMAIE!
“Ando muito completo de vazios.
Meu órgão de morrer me predomina.
Estou sem eternidades.”
Manoel de Barros, poema Os deslimites da palavra
Há muitos anos, levei para ser interrogada, em uma ação penal no Supremo Tribunal Federal, a então ministra da Fazenda – a mulher mais poderosa do Brasil – Zélia Cardoso de Mello. A cobertura de imprensa era algo ensurdecedor. Um massacre. A ministra, brilhante, tinha contra si a má vontade da grande maioria das pessoas, que tinha ódio do bloqueio do ridículo plano Collor, o qual confiscou todas as contas do país, deixando os cidadãos com um limite de 50 mil reais. A defesa, claro, era técnica; mas o circo estava montado.
Na hora do interrogatório, tranquilizei-a e disse que o relator era um homem muito educado, gentil e respeitoso. Não havia chance de ele ser indelicado. Esse é o único momento de defesa pessoal, no qual o réu se manifesta e se defende. Os demais atos são da defesa técnica. A regra é que todos os interrogandos fiquem muito tensos. Zélia, além de tudo, estava amamentando e bastante fragilizada. A garantia era a gentileza, que deveria ser a regra, do ministro que conduziria a audiência.
Começou o interrogatório e a diretora-geral do Supremo, Dra. Alda Villas Boas, ofereceu um pratinho de guloseimas à ré, que, agradecida, pegou uma bolacha. Surpresa geral. O ministro, nervoso e agressivo, fez uma grave reprimenda à ministra Zélia e bradou: “A senhora é ré no meu Tribunal e só pode comer se eu autorizar!”. Parecia filme americano. Perplexidade. A doutora Alda, constrangida, dizendo que ela havia oferecido. Um caos.
A ministra encostou a cabeça no meu ombro e, tremendo, disse: “acho que vou desmaiar”; no mesmo instante, respondi, “Consegue? Desmaie!”. E a ministra desabou desmaiada. A cena, na qual a segurei nos braços, felizmente, não foi filmada, senão seria mais conhecida do que o triste episódio da bermuda no Supremo.
O que cabe anotar é que o ministro Neri da Silveira, com a elegância e a humildade das pessoas sérias, imediatamente, pediu desculpas e tratou de determinar que ela tivesse todos os cuidados devidos. Foi, sem dúvida, um ato dos mais inusitados da história do Supremo Tribunal. O ministro Sepúlveda Pertence, que via a cena de longe, brincou comigo: “você começou a ganhar o caso ali”. Zélia foi absolvida à unanimidade pelo Plenário do Supremo. Claro, porque era inocente.
Recentemente, presenciamos um episódio em que a juíza Lana Leitão Martins, do Tribunal de Justiça de Roraima, ao presidir uma audiência de custódia, tratou de garantir direitos mínimos ao preso. Uma magistrada séria, humanista e com o olhar de respeito às garantias constitucionais, o qual deve presidir a relação no Poder Judiciário. Ao se preparar para interrogar um réu de 20 anos de idade, observou que ele tremia de frio. Ofereceu café ao detento, mandou buscar uma blusa e retirar as algemas para dar a devida dignidade ao ato. A juíza cumpria rigorosamente a lei.
Causou extrema indignação a maneira chula, irresponsável e até criminosa com a qual reagiram representantes da extrema direita. O deputado federal Nikolas Ferreira, do PL-MG, foi debochado e tratou a ação da juíza como um privilégio ao pobre detento. O líder deles, Jair Bolsonaro, cuidou de voltar a pedir o fim da audiência de custódia. Imediatamente, os indigentes intelectuais Sérgio Moro e Deltan fizeram coro de maneira cruel. Faltou, inclusive, inteligência, pois esses deveriam estar numa fase de defender os direitos dos presos. Afinal, como diz o ditado, “a vida dá, nega e tira”.
No entanto, o que impressiona no episódio é que a extrema direita criou um fosso no Brasil. A questão do país não é mais só ideológica e muito menos partidária. A divisão se dá em torno de visão do mundo. Há os que respeitam e prezam pelos direitos constitucionais e pela dignidade como regra de convivência. E há os que se desumanizaram. Tomados por um ódio insano, construíram nuvens tóxicas e densas que não os permitem enxergar o outro e que impedem os demais de respirar ares puros e democráticos. A próxima tarefa será tentar dar a esses bárbaros um banho de civilização, de respeito e até, se possível, de amor ao próximo.
Remeto-me a Mia Couto, em Versos do Prisioneiro A Sentença:
“Você
tem que aprender
a respeitar a vida humana, disse o juiz.
Parecia justo.
Mas o juiz
não sabia que, para muitos,
a vida não é humana.
O prisioneiro retorquiu:
há muito me demiti de ser pessoa.
E proferiu, por fim:
um dia,
a nossa vida será, enfim,
viva e nossa.”
Antônio Carlos de Almeida Castro, Kakay