A DOR DA FOME
“A maior riqueza do homem
é a sua incompletude.
Nesse ponto sou abastado.
Palavras que me aceitam como sou – eu não aceito.”
Manoel de Barros
O discurso do Lula na Science PO em Paris, por quase 2 horas, encantou profundamente a meninada francesa que lotou o auditório. A plateia dividia-se entre brasileiros e franceses e era possível notar, pelos fones de ouvido que acompanhavam a tradução simultânea, que os estudantes locais eram muitos. E reagiam com a espontaneidade juvenil que fomos perdendo ao longo da vida.
Havia no ar uma certa eletricidade com todos querendo demonstrar, de alguma maneira, que precisamos ter o nosso país de volta. Aquele Brasil alegre e pulsante, que o fascismo fez ficar triste e fez desaparecer a esperança, trocando-a pela apatia. O Lula falou sobre a necessidade de resgatar uma alegria perdida. Caminhando com Helena Kolody:
“Pintou estrelas no muro e teve o céu ao alcance das mãos.”
De toda a exposição, a parte que mais me sensibilizou foi quando ele falou da fome, que hoje é o grande e real fator desestabilizador do país. Foi tocante vê-lo, emocionado, falar da alegria que foi ter visto, em 2012, a ONU anunciar que o Brasil deixava o mapa da fome. E foi dilacerante ter que encarar o que o nosso povo vive hoje.
Mais de 100 milhões de brasileiros vivem em insegurança alimentar, ou seja, não sabem se terão comida no prato nos dias seguintes. E, extrema crueldade, 20 milhões estão passando fome neste momento.
É impossível acreditar que a elite perversa e insensível considere isso somente um número! Reduzir os 15% da população ativa que está desempregada e os 20 milhões de famélicos a um simples número é desumanizar a sociedade. É cravar um punhal no peito de uma criançada que vai crescer como se a fome fosse algo normal e aceitável.
Quando Lula fala da fome que ele passou com sua família, ele tira os números da mesa de discussão e coloca uma realidade que tem que ser urgentemente enfrentada. E é bom e triste ver o país ser ouvido de novo nos foros internacionais. Bom porque nos dá uma lufada de esperança, e o homem não vive sem esperança; ruim porque nos deixa evidente que o Brasil é governado por um presidente que nos deixa envergonhados. Um inepto, ignorante e cruel.
O país perdeu a luz e a capacidade crítica. Não podemos nos esquecer que foi com um discurso de ódio, com mentiras abjetas, mas também assumindo ser fascista, misógino, racista, machista, apoiador da tortura e da cultura da morte, que esse presidente se elegeu com 57 milhões de votos. Não podemos perder de vista o fosso que foi criado no meio da sociedade brasileira, que dificilmente conseguirá se unir novamente.
Certos movimentos marcam indelevelmente um povo. Basta acompanhar a história para constatar que vários países mudaram sua essência depois de grandes tragédias e de enfrentarem guerras cruéis, fome e desolação. O Brasil não sairá dessas trevas sem fazer um enfrentamento de si mesmo. Remeto-me a William Shakespeare:
“Nossas dúvidas são traidoras e nos fazem perder o que, com frequência, poderíamos ganhar, por simples medo de arriscar.”
Boa parte das pessoas que acompanham a trágica realidade do país quer acreditar que é possível mudar. Sem essa crença, é impossível apegar-se a um projeto de resgate que tire o Brasil do buraco.
O discurso do Lula foi, no fundo, sobre isso: fazer o enfrentamento da barbárie e voltar a ter fé, sem medo de ser feliz. Colocar o humanismo novamente nos planos de definição de um próximo governo. É bom ver o país ser ouvido de novo, com respeito, nos foros internacionais. Principalmente depois dos vexames impostos pelo Bolsonaro na ONU e nos encontros com autoridades de outros países.
Pode parecer pueril, mas a fala do Lula para os estudantes foi, também, sobre a necessidade do resgate da autoestima. Não há como fazer o bom combate se não formos à luta, se nós agacharmos na hora do tapa e se não tivermos a coragem e a disposição do confronto.
Talvez por isso o discurso tenha terminado com uma mensagem simples, mas tocante: um pedido aos brasileiros que estudam na Science PO, em Paris, para que não se esqueçam dos milhões de conterrâneos que não têm a mesma oportunidade que eles estão tendo. Para que, após a conclusão dos estudos, voltem o olhar aos que têm fome e sede de igualdade.
Lula agradeceu a solidariedade que recebeu, não só dos brasileiros, durante o duro período de provação pelo qual passou. Com humor e charme, afirmou que saiu para o embate sem ódio e sem rancor. Frisou a quantidade enorme de pessoas que foram incentivadas a estudar fora do país no governo dele, baseado em políticas de apoio à educação. E, sem explicitar, para não parecer uma cobrança, deixou ao final um apelo: estudem, preparem-se, mas voltem para o Brasil, pois o país precisa de todos vocês.
Não vai ser fácil, mas alguma esperança vai voltando a ser nossa companheira.
Como no haikai Turbulência, de João Guimarães Rosa:
“O vento experimenta o que irá fazer com sua liberdade…”
Antônio Carlos de Almeida Castro, Kakay