A força do Legislativo

“Na manhã do novo dia, ainda na aurora
Os abutres se levantarão em negras nuvens
Em costas distantes
Em voo silente
Em nome da ordem”

Bertolt Brecht, Poema ‘Na Manhã do Novo Dia’

 

A Comissão Parlamentar de Inquérito é um importante instrumento do Legislativo, que atua com poderes próprios de autoridades judiciais na investigação de um fato previamente determinado. É um direito da minoria de seus membros e pode ser uma maneira relevante não só de fiscalizar, mas também de apurar responsabilidades civis e criminais. Ao final, o relatório produzido pode ser encaminhado ao Ministério Público para as providências cabíveis. Também compete à CPI apresentar sugestões sobre os temas tratados. É uma arma poderosa do Poder Legislativo se usada com autoridade, autonomia e independência.

Nos últimos anos, com a criminalização da política usada como estratégia para enfraquecer o Congresso, em muitas situações, o que se viu foi o Legislativo não corresponder à altura das responsabilidades de um poder essencial para o estado democrático de direito.

Despiciendo dizer que ninguém está acima da lei, mas, quando se usa ilimitadamente a espetacularização das investigações criminais e uma superexposição midiática, o que ocorre é um arquitetado desgaste da política e o surgimento de grupos que se intitulam “não políticos” para instrumentalizarem o sistema. O resultado de toda essa trama, em regra, é uma crise institucional.

No país do lavajatismo, Sergio Moro e seu bando ajudaram a eleger o atual presidente, foram cúmplices desse desgoverno e o ex-juiz ocupou o principal cargo da estrutura de poder. Romperam, posteriormente, numa clara briga de quadrilha na guerra pelo comando. E o Brasil se afundou no desastre, na catástrofe de uma condução criminosa da crise sanitária. O mais completo descalabro com a politização do vírus dá a certeza de que não foi apenas negligência ou imprudência que nos levaram ao abismo. Foram atos criminosos e deliberados que agora estão sendo apurados em uma CPI.

O resultado das investigações parece ser, desde logo, do conhecimento de todos. O que se faz é buscar as provas materiais e testemunhais da participação do presidente da República e seus comandados nos crimes cometidos. A CPI começou há pouco, mas o presidente exibiu em todas as mídias, por meses, atitudes clara e objetivamente criminosas. O que se cumpre é um rito legal e constitucional, até para permitir o devido processo legal, a ampla defesa e o contraditório. Em um país democrático, todos os direitos devem ser igualmente respeitados, independentemente de quem esteja sendo investigado.

O desdém com a vida e o sadismo com que essas autoridades trataram a pandemia não podem passar impunes. A cena do presidente da República simulando uma pessoa com falta de ar é a prova cabal da desumanidade com que esse governo trata os amigos, os familiares e os conhecidos dos mais de 420 mil mortos. Enquanto brasileiros se amontoam nas filas de hospitais, ou sofrem na solidão dos leitos das UTIs, ou mesmo nos enterros coletivos, onde sequer o ritual de despedida pode ser cumprido, o chefe da nação tripudia com o sentimento de perda e de dor. A falta de ar que levou milhares de pessoas a terem uma morte angustiante parece ter lesado o cultor da morte e responsável direto pela nossa tragédia.

A CPI terá o papel de conseguir provas para mostrar a barbárie que foi institucionalizada. Esse é o principal papel dos senadores que trabalham sob os olhos do país inteiro e do mundo. Mas há, e é bom refletirmos, a necessidade de a Comissão apresentar algumas propostas de mudanças legislativas. Essa é outra face das CPIs, afastada daquela investigativa, e é de extrema relevância.

Ainda nos dias de hoje, percebemos que o Brasil é uma República imatura e possuída, dominada por feudos imperiais. A própria comissão só foi instalada, mesmo com todos os requisitos constitucionais presentes, por uma decisão do ministro do Supremo Tribunal Federal. O presidente do Senado usou de seu poder para não instalar, por motivos que não precisou declinar, até a ordem do Supremo. Outros exemplos para reflexão, especialmente dos senhores congressistas.

Existem na Câmara dos Deputados dezenas de pedidos de impeachment. Certamente, em nenhum outro país, em nenhuma outra época, o presidente da República, de qualquer República, cometeu tantos crimes de responsabilidade. Claros. Evidentes. Insofismáveis. No entanto, o poder imperial do presidente da Câmara de simplesmente não precisar prestar contas sobre a não apresentação dos pedidos para a deliberação por aquela Casa, é uma voz que cala as outras 512 vozes. Sem precisar fundamentar.

O mesmo ocorre do outro lado da praça dos Três Poderes. Em clara demonstração de desprestígio da Câmara e do Senado, um juiz da Suprema Corte, em decisão monocrática, impede a vigência da lei que instituiu o Juiz de Garantias, a maior conquista do processo penal brasileiro. Uma lei que foi discutida à exaustão no Congresso, com audiências públicas e debates, votada por uma esmagadora maioria, hoje está no limbo há 15 meses por uma decisão que se sobrepõe, imperialmente, a todo o Congresso Nacional.

A discussão na CPI sobre os poderes monocráticos, sejam dos presidentes das casas legislativas, do procurador-geral da República ou de um ministro do Supremo Tribunal, sem controle coletivo, se faz urgente.

Imagine se o relatório final da Comissão for incriminando o presidente da República por crime comum, cometido na vigência do cargo. O resultado será encaminhado ao procurador-geral da República. E, mais uma vez, a decisão estará à mercê da voz do príncipe. Como dominus litis, o procurador-geral poderá sobrepor sua vontade a todo o trabalho da CPI e determinar o arquivamento do relatório.

E, se o relatório final apontar crime de responsabilidade, a voz do presidente da Câmara é que decidirá sobre o encaminhamento ao plenário da Casa do Povo sobre o pedido de impeachment.

Por mais que eu respeite, e no caso concreto tenho, pessoalmente, fortes motivos para respeitar e admirar as pessoas que ocupam esses relevantes cargos, não é disso que se trata. Tenho a firme expectativa e esperança de que os presidentes Arthur Lira e Rodrigo Pacheco compreendem a importância do tema e não faltarão ao país. É a mesma expectativa que deposito no PGR, Dr. Augusto Aras. É hora de o legislativo ocupar o papel de destaque e relevância que nos dá a segurança do necessário equilíbrio dos poderes. A saída é legislar e usar os princípios republicanos. Estabelecer prazos e julgamentos colegiados para todas as hipóteses. Seja através de comissões preestabelecidas nas casas legislativas e na Procuradoria-Geral da República, seja através da manifestação plenária, no prazo de 20 dias, da Suprema Corte.

A necessidade de uma decisão colegiada pode, num primeiro momento, parecer que diminui a importância dos cargos. Mas, sob uma perspectiva acurada, percebe-se que isso valoriza os poderes pela estabilidade e pelo que nos remete a um sentimento de República. Nunca é demais lembrar Platão:

“Muitos odeiam a tirania apenas para que possam estabelecer a sua”.

Publicação Original: O Dia

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