Angústia existencial, por Kakay
“O homem lúcido me espanta
Mas gosto dele na lírica.
A verdade metafísica
Modela o verbo e a garganta.
O homem lúcido verifica
Que a existência não se estanca
Põe a baba ao pé da planta
Eis que a planta frutifica.
O homem lúcido como quer
Seja lá onde estiver
Ele está, sem aquarela.
Sabe que a vida é viscosa
Sabe que entre a náusea e rosa
Foi que a ostra fez a pérola.”
Leão de Formosa
Muito além da morte, este vírus inoculou nas pessoas a insegurança, o pânico, a dúvida e uma quase desesperança. Talvez pela inusitada junção de fatores: isolamento, crise econômica mundial, fechamento do comércio, home office, escolas fechadas, desemprego, proibição de viagens, número abissal de mortos, enfim, um caos sem precedente. Mas o abalo psicológico tende a crescer e preocupar ainda mais. E se manifesta das maneiras mais diversas. Busco refúgio em Augusto dos Anjos:
“Não enterres, coveiro, o meu passado,
Tenha pena destas cinzas que ficaram;
Eu vivo d’essas crenças que passaram,
E quero sempre tê-las ao meu lado.
…
Ai! Não me arranques d’alma este conforto!
Quero abraçar o meu passado morto
dizer adeus aos sonhos meus perdidos.”
Tenho ouvido relatos pungentes, dilacerados, emocionados, preocupantes.
Uma pessoa infectada, mesmo apresentando sintomas leves, reconhece que a angústia tomou conta dela. Homem forte, acostumado ao enfrentamento das dificuldades sem se abalar, viu-se tomado de angústia e tristeza com choros frequentes e incontroláveis. Outro, mais velho, sereno e recatado, deparou-se assomado de profunda ansiedade sempre ao cair da tarde, como que com medo da chegada da noite. Percebeu que os dois meses que passara internado em um leito de UTI o tiraram do prumo.
Político experiente, acostumado com os duros embates no Parlamento, se fragiliza ao falar da perplexidade de se sentir tão vulnerável. E o tempo na UTI consolidou um sentimento de indignação: “Por que comigo? ” Como se fosse possível decodificar as preferências desse vírus maldito. Um outro não se contém de medo por ter que se isolar dentro de casa sem saber se infectou o resto da família. Como característica comum tem a voz embargada, o soluço contido, o medo do futuro, certa raiva travestida de indignação e um vazio abissal frente ao caos e ao desconhecido.
Ainda teria outros exemplos de situações dramáticas, de mortes inclusive, mas meu olhar se fixa num silêncio ensurdecedor dos “eus” que estão à procura de um encontro interior. De uma segurança. A perplexidade frente ao desconhecido assola a humanidade. Quem dá a régua agora é a forma como cada um enfrenta as vicissitudes, esse é o sinal do novo tempo. E, claro, como olhar de frente essa desilusão que já habita boa parte de nós? Como fazer da alma um refúgio e não um precipício? E em Pessoa, no Livro do Desassossego:
“O tempo! O passado!
…
Aquilo que fui e nunca mais serei! Aquilo que tive e não tornarei a ter! Os mortos! Os mortos que me amaram na minha infância. Quando os evoco, toda a alma me esfria e eu sinto-me desterrado de corações, sozinho na noite de mim próprio, chorando como um mendigo o silêncio fechado de todas as portas.”
O impressionante dado de que no Japão ocorreram 2153 mortes em outubro por suicídio e 2087 mortes por covid-19, mesmo com toda a nossa diferença cultural, nos faz olhar para a crise com um olhar não óbvio, mas de incredulidade. É necessário ouvir àquele que sem se dar conta perdeu a capacidade de enfrentar o vírus “só” como um desastre com forte potencial de matar, e agora o vê como um risco palpável de propulsor da angústia, do medo, dessas outras mortes mais torturantes e sufocantes. Esse estado de pânico e de medo profundo não pode ser tratado como um efeito colateral da doença. O flagelo da alma, uma outra doença, é uma morte em vida e destrói as pessoas.
Vivemos em um país onde o governo brinca com a vida, ironiza a morte, despreza a ciência, não prioriza a vacina, nega a gravidade e até a existência, pasmem, da pandemia. Se a morte, 173.000 mortos, que é algo físico e palpável, não sensibilizou esses bárbaros imagine as cicatrizes da alma. Essas não serão sentidas e certamente serão motivos de escárnio. São essas chagas invisíveis que nos assombram. Precisamos ler T.S. Eliot:
“Nós somos os homens ocos
Os homens empalhados
Uns nos outros amparados
O elmo cheio de nada.
Aí de nós!
…
Fôrma sem forma, sombra sem cor,
Força paralisada,
gesto sem vigor;
…
Do reino em sombras da morte
A única esperança de homens vazios.
…
Entre o desejo
E o espasmo
Entre a potência
E a existência
Entre a essência
E a descendência
Tomba a sombra.
…
Assim expira o mundo
Não com uma explosão
Mas com um suspiro.”
Que país sairá desse momento de incredulidade, medo, angústia profunda? Cada um de nós envolto por um manto invisível de incerteza e sem espaço para um enfrentamento. Sem coragem para o choro público. O medo da morte, do desemprego, da solidão, todos esses medos sempre afligiram o homem e, de uma forma ou de outra, já são enfrentados e incorporados ao cotidiano. Mas é bom que tenhamos um olhar para essa angústia indefinida. Que não tenhamos medo de assumir nossas fragilidades e fraquezas.
Que neste momento a solidariedade e a empatia sejam nossas companheiras e que o desnudar interior possa nos revelar e nos acudir. A tortura íntima pode deixar sequelas que superam as já conhecidas mazelas. E essas sombras podem se materializar e formar muros intransponíveis entre as pessoas. E o pior, talvez, é que a melhor maneira de superar ou tentar minimizar essa dor silenciosa, a forma mais simples, esteja justamente nas restrições impostas pela pandemia: o abraço, o aperto de mão, o beijo.
Vamos então reinventar o afeto! Vamos criar uma maneira também silenciosa, se preciso, de dizer o amor e expressar a amizade. A solidariedade pode ser a vacina para essa outra praga. E essa não depende da ciência, não precisa da conscientização dos bárbaros, depende somente de nós. Vamos nos permitir.
Essa postura vai definir, em boa parte, o mundo que vai sair desse caos. O abraço que aperta e acalenta, mesmo sem toque, pode ser real, pois é um abraço que acolhe as profundezas de nós mesmos. Me remeto a sensibilidade de Sophia de Mello Breyner no poema Ausência:
“Num deserto sem água
Numa noite sem lua
Num país sem nome
Ou numa terra nua
Por maior que seja o desespero
Nenhuma ausência é mais funda do que a tua.”
Publicação Original: Poder 360