FLIPARACATU E FLITABIRA: ROTAS DE FUGA

 

No território indígena,

O silêncio é sabedoria milenar,

Aprendemos com os mais velhos

A ouvir, mais que falar.”

Márcia Wayna Kambeba, poema Silêncio Guerreiro

 

O homem, ao contrário da mulher, não sabe ouvir. Anos acumulados de machismo, prepotência e mandonismo fizeram com que os homens passassem a gostar da própria voz. Acostumados a decidir e, até, a desprezar a opinião feminina, uma sociedade patriarcal foi se delineando e nós, homens, fomos nos distanciando de relações maduras e respeitosas. Pode até ser que no relacionamento amoroso, pela força e determinação das companheiras, exista um respeito, que seria o mínimo e o natural. Mas eu falo das relações na sociedade, no trabalho e na vida, enfim.

 

A desigualdade que permeia o dia a dia vem muito do olhar enviesado que é a marca das últimas gerações. Esse vício pega e é contagioso. Não é à toa que, mesmo em ambientes acadêmicos, em tribunais e em seminários, é comum ver homens interrompendo falas de mulheres, como se a opinião delas fosse menor ou desimportante. Não acostumaram a ouvir. A ponto de ter sido cunhada a expressão “mansplaining” para definir esse ato machista de tentar explicar a uma pessoa do sexo feminino o que, certamente, ela já deve saber.

 

Por isso, a importância de termos mulheres em cargos decisórios, nos quais as vozes delas, naturalmente, tenham o peso que merecem ter. Por mais que nós homens sejamos companheiros, éticos e respeitosos, não conseguiremos nunca ter a visão do mundo com a experiência condensada de uma mulher que nasceu e cresceu nessa sociedade contaminada. Uma mulher juíza, certamente, vai emprestar ao processo sua experiência acumulada e sua ótica, o que pode humanizar essa área tão crua e desigual. Os erros, claro, ocorrem de todos os lados, mas devemos permitir que elas tenham o direito de errar. E de acertar.

 

Imagine, então, uma mulher negra nesse nosso vasto mundo. Se já é difícil ter voz sendo mulher, é necessário um esforço para pensar as abissais dificuldades de uma negra enfrentando a misoginia, o racismo e o preconceito. Uma mulher negra com a toga de ministra do Supremo seria um raio de esperança em tempos melhores. Ela, seguramente, levaria para o tribunal os anos acumulados de uma segregação que deveria envergonhar a todos.

 

Por mais que sejamos antirracistas e solidários à causa, nunca, em nenhuma hipótese, vamos poder nos colocar sob o prisma de uma mulher negra que, certamente, cortou um riscado para se fazer ser ouvida e ser valorizada. O meu olhar pode até ser de um respeito profundo, mas jamais vai substituir o olhar único e calejado de uma mulher negra ao enfrentar as vicissitudes do processo e da vida.  Como nos ensinou Trudruá Dorrico, no poema Colonizar: “Este luto nunca acabou para nós, ou mesmo a luta”.

 

Nos últimos tempos, tenho tentado fugir um pouco do ambiente jurídico e buscado refúgio, mais e mais, no mundo literário. A poesia sempre foi minha rota de fuga. Quando fiz 50 anos, meu convite foi um livro de poesias. Nele, registrei que, para mim, a poesia era um dique para não transbordarmos, uma pá para recolhermos os nossos escombros, um sonho para as noites em desvario, um disfarce para sermos o fingidor, um mote para distrair-nos do eterno ou, simplesmente, a companheira de todas as horas.

 

E, agora, os festivais literários mostram a força da escrita da mulher e, especialmente, da mulher negra. O livro, depois de escrito, tem vida própria e ultrapassa barreiras que pareciam intransponíveis. Como diria Eliana Alves Cruz: “O rio, por maior que seja, nunca briga com a pedra. Ele segue seu rumo… e chega no mar”.

 

Os dois últimos festivais, de Paracatu e de Itabira, mostraram a incrível força, magia até, da escritora mulher. Inclusive no ofício cuidadoso das editoras, em que se destacam Rejane Dias e Simone Paulino. E, nas representantes dos povos originários, as excelentes Trudruá Dorrico e Marcia Kambeba.

 

Em Itabira, a magnífica Conceição Evaristo recebeu o importante e relevante prêmio Juca Pato. Pela primeira vez, as mãos negras, e de uma mulher, levantaram o troféu. E o palco virou uma festa com a força, o charme e o ritmo africano, especialmente da Conceição, da Eliana Alves e da Lívia Sant’Anna. Talvez, através da força da escrita, da literatura e da poesia, a mulher possa cada vez mais encontrar o seu lugar de fala.

 

Eu espero poder continuar aplaudindo e bebendo nas águas limpas do rio de sabedoria que brota, de forma caudalosa, de dentro de cada mulher que, no fundo, representa a todos. Remeto-me a Conceição Evaristo, no poema Vozes-mulheres:

 

A voz de minha bisavó

ecoou criança

nos porões do navio.

ecoou lamentos

de uma infância perdida.

 

A voz de minha avó

ecoou obediência

aos brancos – donos de tudo.

 

A voz de minha mãe

ecoou baixinho revolta

no fundo das cozinhas alheias

debaixo das trouxas

roupagens sujas dos brancos

pelo caminho empoeirado

rumo à favela.

 

A minha voz ainda

ecoa versos perplexos

com rimas de sangue

e

fome.

 

A voz de minha filha

recolhe todas as nossas vozes

recolhe em si

as vozes mudas e caladas

engasgadas nas gargantas.

a voz de minha filha

recolhe em si

a fala e o ato.

O ontem – o hoje – o agora.

Na voz de minha filha

se fará ouvir a ressonância

o eco da vida-liberdade.”

 

Antônio Carlos de Almeida Castro, Kakay

 

Artigo publicado no Poder 360 no dia 10 de novembro de 2023.

 

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