FORO PRIVILEGIADO E O RECURSO PARA O BISPO
Há muitos anos, defendo o fim do foro dito privilegiado. Penso que, em um país republicano, o “privilégio” não pode ser admitido. Em razão de advogar em Brasília, onde estão os tribunais superiores, acabei me valendo da norma constitucional. Ao longo da minha vida profissional, advoguei para 4 Presidentes da República, mais de 90 governadores, dezenas de ministros e senadores. Cumpria o rito constitucional. Mas sempre mantive a opinião no sentido de defender que o foro especial, além de, em regra, não ser uma vantagem para o cliente, é uma opção constitucional pouco republicana.
Na minha concepção, somente os presidentes dos Poderes e os ministros do Supremo Tribunal deveriam ter o foro na Suprema Corte. As demais autoridades seriam julgadas por um juiz federal de primeira instância. Toda e qualquer cautelar – seja de prisão, busca e apreensão ou afastamento – teria que ser submetida a uma turma colegiada de
5 desembargadores federais. Estaria de bom tamanho a garantia para suas excelências.
Sempre brinco com os clientes, que adoram, circunstancialmente, o foro por prerrogativa de função: “se perder no Supremo, você terá que apelar para o Bispo!”. Mas há, quase sempre, uma sensação de que o foro nas Cortes Superiores dá certo conforto. Vez ou outra, a discussão sobre o tema ocupa o noticiário nacional. Em regra, os motivos da tentativa da mudança de foro também são bem pouco republicanos. Neste momento, embora o motivo explicitado seja o medo do ministro Alexandre de Moraes, na verdade, o pavor dos congressistas é o inquérito sobre a questão do orçamento, e é o ministro Flávio Dino quem tira o sono dos deputados e senadores.
O impressionante é que a volúpia pela impunidade faz com que as pessoas percam até a sensação do ridículo. Nos debates sobre o foro, os políticos querem discutir privilégios de envergonhar qualquer cidadão que tenha uma mínima noção de respeito à Constituição. A tentativa de impedir qualquer processo contra parlamentar, sem que
exista autorização expressa da Casa Legislativa, é uma busca de impunidade, e não imunidade. Mas os parlamentares querem ir além. Pretendem que a necessidade de autorização seja prevista até mesmo para iniciar uma investigação. É uma carta branca para cometer qualquer crime. Um acinte.
Entendo que é factível sim ter algumas salvaguardas. Por exemplo, não ser possível o deferimento monocrático de qualquer medida cautelar, mesmo quando o processo, ou a investigação, tramitar em um tribunal. Se houver uma urgência urgentíssima, e a decisão monocrática se impuser, que se determine a imediata submissão para o
referendo pelo colegiado. Agora, sem perder de vista que a última palavra sobre a constitucionalidade de qualquer medida será da Suprema Corte.
Parece óbvio que a discussão sobre a PEC “dos privilégios”, que busca, meio a certo pânico, votar a questão do foro, em nenhuma hipótese atingirá o processo da tentativa de golpe do ex-presidente Bolsonaro. O prazo para alegações finais dos réus já se esgotou, a instrução terminou. O relator, ministro Alexandre de Moraes, pode pedir dia
para julgamento ainda neste mês de agosto. O que seria, inclusive, prudente. Quanto mais cedo esse caso for julgado e os condenados recolhidos à cadeia, menos tumulto causará.
A polêmica sobre a conveniência do foro passará a ser um debate de ideias, não uma fuga, um desvio para o medo ou um oportunismo. Uma conversa com audiências públicas, com aprofundamento de conteúdo, com a seriedade e a profundidade que o tema requer.
Remeto-me ao velho Pessoa, no Livro do Desassossego: “Tenho a náusea física da humanidade vulgar, que é, aliás, a única que há. E capricho, às vezes, em aprofundar essa náusea, como se pode provocar um vômito para aliviar a vontade de vomitar”.
Antônio Carlos de Almeida Castro, Kakay
