INDIGENTES INTELECTUAIS

Devo falar agora de mim. Isso seria um passo em direção ao silêncio.”

Samuel Beckett, O inominável

 

Quando a professora Lígia Moura Costa me convidou para ser entrevistado para um livro que ela iria organizar sobre a Lava Jato, eu, de pronto, aceitei. Desde 2016, quando percebi que essa Operação era uma farsa – um projeto de poder no qual um juiz parcial se associara, como comandante, a uma força-tarefa de procuradores, os quais formavam a República de Curitiba -, venho me dedicando a apontar os excessos desse bando que instrumentalizou o Poder Judiciário e o Ministério Público, com o apoio de parte da grande mídia e de grupos políticos. Excessos que, em muitos casos, devem ser analisados pelo prisma de possíveis responsabilidades civis e criminais.

 

Antes, eu dizia isso Brasil afora; hoje, é o Supremo Tribunal que julgou o magistrado parcial e incompetente e que considerou que houve corrupção ao sistema de Justiça. Como já participei de centenas de discussões, livros e programas de televisão, não cuidei de perguntar quem seriam os outros entrevistados. Até porque, em regra, os atores e chefes dessa Operação farsesca não se apresentam para o debate. Eram muito faceiros quando posavam de heróis incensados por parte da grande mídia. Mas, como indigentes intelectuais, não ousam grandes voos, salvo sob a segurança da estrutura que montaram e hoje desmoronou. Como disse Heráclito: “Tudo, pois, que rasteja partilha da terra”.

 

Para minha surpresa, descubro, ao receber o convite para o lançamento, que alguns dos principais protagonistas da Operação, hoje desmoralizada, estavam também como entrevistados. Interessante, pois iria estar num mesmo livro com quem perseguiu e até destruiu a vida de muitos dos meus clientes e amigos, atingidos pela maldade lavajatista.

 

Prisões para delações. Prisões espetaculares. Espetacularização das operações. Pré-julgamentos. Delações combinadas e forjadas. Conluios explícitos e criminosos entre alguns dos atores. Perseguições aos familiares para atingir o investigado. Proteção explícita a quem apoiava os excessos. Criminalização da política. Criminalização da advocacia. Cooptação de advogados sem caráter para servirem de linha auxiliar do Ministério Público. Estupro da Constituição e do instituto da delação. Malversação de bilhões que, ainda hoje, não está esclarecida. Depoimentos falsos inseridos em processos judiciais. Chantagem. Extorsão. Prisão injusta e ilegal do maior líder político brasileiro para ajudar a eleger o fascista do Bolsonaro. Power point. Ministério como prêmio. Vidas e reputações destruídas. Empresas quebradas. Desemprego. Um show de horrores. Em um instante, passou um filme de terror na minha memória. E eu estava ali, vivendo na pele um ditado do poeta baiano Trasíbulo Ferraz que adaptei ao longo dos meus embates: “a vida dá, nega e tira”.

 

Compareci ao lançamento e, na hora dos autógrafos – que foram muitos, pois todos os livros foram vendidos -, fiz uma dedicatória que, com algumas modificações, até pelo tamanho da fila, tinha a seguinte linha mestra: “A Lava Jato só vai acabar quando forem responsabilizados, civil e criminalmente, os que corromperam o sistema de Justiça. Por um país mais justo e igual e por um Judiciário sem juízes parciais e sem procuradores instrumentalizando o Ministério Público por um projeto de poder”. Senti-me bem ao me posicionar, como sempre fiz, e registrar, mais uma vez, a necessidade de passar a limpo essa farsa que foi a Operação Lava Jato.

 

Recentemente, participei de um grande seminário na USP sobre a Operação Lava Jato e quase todos os expositores falaram com a ênfase de uma análise crítica, mas considerando que a Democracia venceu o abuso autoritário desse projeto de poder. Posicionei-me, como venho fazendo, chamando à reflexão sobre a necessidade de responsabilizarmos os autores pelos excessos cometidos, sob pena de sermos surpreendidos com a volta desse monstrengo.

 

O ex-procurador-geral Augusto Aras a quem critiquei, leal e abertamente, por sua ausência de conduta em relação ao genocida Bolsonaro, fez um excelente trabalho, sério e responsável, no enfrentamento do fortíssimo grupo lavajatista que dominava o Ministério Público. Cheguei a escrever um artigo defendendo a sua recondução ao cargo de chefe do MPF por entender que seria um risco tirá-lo naquele momento de enfrentamento da estrutura da República de Curitiba. Numa live do Prerrogativas, o então procurador-geral, com coragem e destemor, desnudou os intestinos do grupo que se julgava mais poderoso do que a instituição do Ministério Público. Foi um momento importante e uma grande contribuição do Prerrô e do Dr. Aras para a estabilidade democrática.

 

Agora, os rumores são de que a interinidade no comando do Ministério Público fez com que os tentáculos lavajatistas começassem a mostrar suas garras na instituição. Tudo aquilo que foi enfrentado com seriedade pode estar sendo colocado em risco. É claro que a posse do novo procurador-geral, Dr. Paulo Gonet, afastará os riscos de o retrocesso ser consolidado, pois o futuro PGR tem compromisso com a lisura, com a ética, com a seriedade e com a Constituição. Era tudo o que faltava ao grupo lavajatista.

 

É importante o governo repensar o tempo para nomeações sensíveis como PGR, Supremo e Tribunais Superiores. Como já é sabido, com antecedência, a época das aposentadorias, seria importante que as nomeações se dessem imediatamente. Até por respeito às instituições, que ficam à mercê das interinidades ou desfalcadas da sua composição plena. Sem contar a briga fratricida que começa a se dar à luz do sol após a abertura das vagas. Seria relevante e republicano rever esse costume.

 

Ao final do lançamento do livro, fui abordado por uma professora que fez um interessante comentário. Ela salientou o quanto tenho falado e escrito sobre a necessidade de os advogados terem uma forte formação humanista. Hoje, os cursos de Direito usam mais cartilhas e manuais do que efetivamente preparam o jovem para a profissão. E, para mim, um advogado, especialmente na minha área criminal, sem uma boa formação humanista, não entende a complexidade do que é se responsabilizar pela vida, pela liberdade e pela honra dos outros.

 

Ela me lembrou de um episódio que sempre conto em palestras aos estudantes. Recorro-me sempre a este fato: certa vez, perguntei ao ministro Evandro Lins sobre o que ele indicaria de leitura para uma jovem estagiária. Ele respondeu: “leia os clássicos, leia poesia – leia muita poesia -, leia romances, contos, livros, jornais, folhetins. Se sobrar tempo leia Direito”. E aí, ela me indagou: “você sempre diz que os membros da República de Curitiba são indigentes intelectuais. O que você recomendaria para eles lerem?”. Ao que respondi, para gargalhada geral: “a Constituição! Eles têm horror à Constituição!”.

 

Sempre lembrando o que disse da tribuna do Plenário do Supremo Tribunal, quando do julgamento da ADC 43, que resultou na liberdade do Presidente Lula: “Hoje, cumprir a Constituição passou a ser um ato revolucionário. (…) O Supremo Tribunal Federal – o Poder Judiciário – pode muito, mas não pode tudo, porque nenhum Poder pode tudo!

 

Antônio Carlos de Almeida Castro, Kakay

 

Artigo publicado no site Poder 360 no dia 8 de dezembro de 2023.

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