O pix do Deltan: o Moisés de Curitiba
“Ninguém pode servir a dois senhores; pois odiará um e amará o outro, ou se dedicará a um e desprezará o outro. Vocês não podem servir a Deus e ao Dinheiro.”
Mateus 6:24
Ao longo da vida, vivenciei muitos casos do que chamo de “vergonha alheia” – quando você presencia uma cena na qual determinada pessoa faz algo muito ridículo. O constrangimento é tanto que a gente tende a sentir profunda pena e vergonha. Nesta semana, o ex-procurador e ex-deputado Deltan Dallagnol gravou uma das mensagens mais embaraçosas que eu já vi: uma conversa com Deus em que responde a ele mesmo em nome do Senhor Deus. Ele tem essa mania de conversar com ele mesmo de uma maneira, em regra, ininteligível. Mas, dessa vez, ele, despudoradamente, incorporou o próprio Deus para travar bisonhos diálogos. E Deus, sim, ele próprio, o Criador, dirige-se a Deltan e diz: “Oh Deltan, siga avante… Eu estou cuidando de você… Há muito tempo eu dei a Moisés a direção para ele sair do Egito”. Pasmem, é isso mesmo: ele incorpora Deus para responder as perguntas que ele faz! Jogando, claro, para seus seguidores.
No início, surpreso, imaginei que fosse a confirmação de algo que suspeito desde os tempos em que ele era apontado como o suposto chefe da força-tarefa de Curitiba: ele sofre com profundas e sérias dificuldades de cognição e, talvez, até de alguma questão médica ao arrotar tanta arrogância e prepotência. As posturas de dono da verdade e de certa infantilidade, que sempre o caracterizaram, dão sinais de um distanciamento da realidade. E convenhamos que isso em um procurador da República significa algo absolutamente perigoso, dado o poder que o Ministério Público angariou após a Constituição de 1988. Uma prova eloquente do que falo é o famoso power point, no qual o ex-deputado fez uma viagem quase alucinógena. Uma vergonha apresentada com uma empáfia e um orgulho que desnudaram o caráter de quem detinha tanto poder midiático. Ele foi, inclusive, condenado por esse abuso.
Dei-me ao trabalho de ver uma segunda vez o vídeo e pude constatar que não cabe falar em vergonha alheia no caso concreto. É tudo meticulosamente planejado. Esse cidadão visa àquilo que demonstrou mais amar na vida: ganhar dinheiro com os incautos! Depois de uma mensagem extremamente bizarra, em que ele conversa com Deus e Deus o responde, sobrevoando os céus de Brasília, ele revela o seu verdadeiro objetivo: pedir contribuição financeira! É o Deus PIX!
A propósito de ganhar dinheiro, ele mostra, na tela do celular, as centenas de mensagens que já recebeu com transferências que o auxiliam a pagar uma punição por ter desviado dinheiro público. E seu semblante muda completamente quando ele mostra os valores caindo na conta dele. É exatamente isso: um ex-procurador assume seu lado de “pastor” e conclama os fiéis a pagarem em seu nome o que desviou dos cofres públicos, conforme reconheceu o TCU. Seria cômico, se não fosse trágico. O uso ostensivo da malandragem e da boa-fé das ovelhas que o seguem, ao que parece, sem nenhum critério ético. Ele está condenado por mau uso do dinheiro do povo. E, certamente, vai arrecadar muito mais do que desviou do erário. Ainda vai lucrar com seu crime. É frustrante. Remeto-me a Mia Couto, no seu poema Versos do prisioneiro:
“Deixei de rezar
Nas paredes
rabiscadas de obscenidades
nenhum santo me escuta.
Deus vive só
e eu sou o único
que toca a sua infinita lágrima.
Deixei de rezar.
Deus está numa outra prisão.”
E, como se não bastasse, ele se compara a Moisés! Na mensagem, percebendo que até o ridículo deve ter certo limite, e que, afinal, ele estaria falando com o próprio Deus, ele, depois de citar Moisés, faz uma postura de falsa humildade e tenta parecer humano. Parece que já temos uma definição clara do que fará o ex-procurador enquanto espera a sua inexorável condenação criminal: dirá que é um enviado dos céus e seguirá pregando para os seus fiéis.
É interessante notar que a sua condenação unânime pelo Tribunal Superior Eleitoral, que o levou a perder o mandato e os direitos políticos, deu-se pela sua postura de burlar as normas. De tentar fugir de uma série de procedimentos investigativos dando um drible na lei. Essa parece ser, lamentavelmente a postura de vida do futuro “pastor”. Ajudou a fundar a República de Curitiba, em coautoria com o futuro ex-senador, e coordenou, com forte apoio midiático, a maior fraude ao sistema de Justiça já vista.
Para quem fraudou a lei, no entendimento do Poder Judiciário, visando fugir de suas responsabilidades, ludibriar agora os incautos seguidores será uma barbada. Mas, no fundo, esse episódio revela aquilo que desde o início nós alertávamos: o fim último da turma de Curitiba é mesmo a ganância e o deslumbramento pelo poder e pelo dinheiro. A cena desse “pastor” mostrando os inúmeros comprovantes de depósito na sua conta dá engulhos. Dá nojo. Só não causa pena e vergonha alheia porque ele não merece. Mas nos leva à frase do grande Nelson Rodrigues, “Por trás de todo paladino da moral, vive um canalha”.
Antônio Carlos de Almeida Castro, Kakay