Os Garçons do Café de Flore e do Piantella

Perdi muito tempo até aprender que não se guarda as palavras. Ou você as fala, as escreve, ou elas te sufocam.”

Clarice Lispector

 

Os garçons de Paris fazem o complemento da alma daquela cidade mágica. Imagine o que é receber 44 milhões de turistas por ano, o maior número no mundo, e as pessoas quererem um tratamento individual como se estivessem em Patos de Minas. Eu procuro entender a complexidade do que é Paris, seus escritores, seus amantes, seus turistas, seus boêmios, as mulheres que passam sem rumo, seus milionários chatos e excêntricos e, especialmente, seus garçons. São eles que filtram a expectativa dos milhões de turistas e dos inimagináveis pedidos diferentes.

 

Do alto da minha varanda, observo o mundo passar. Virada para o Café de Flore, tenho a certeza de que esse é um dos lugares mais charmosos e fotografados do mundo. Cada retrato é, de certa forma, uma certeza da eternização daquele instante. Um mundo que para. Tenho a mais absoluta convicção de que esse é mais do que um momento único, como devem ser as ocasiões que eternizam nossos sonhos.

 

Fui dono do Piantella por quase 20 anos. Certamente, o mais famoso, interessante e político restaurante brasileiro frequentado por quem ditava a política no Brasil na época da redemocratização. Foi lá que Ulysses Guimarães comemorou quando tomou posse, interinamente, na Presidência da República e onde Lula foi depois de diplomado Presidente em 2003. Todos os políticos batiam ponto no nosso Piantella algumas vezes por semana. Os garçons sabiam de tudo o que ocorria na República. Todos os fuxicos amorosos, traições e romances ocultos. Na vida e também, claro, na política. Era ali, entre mesas estrategicamente colocadas, copos de vinho e whisky, telefonemas velados e olhares furtivos, que os atendentes acompanhavam, ao vivo, o que se passava no Brasil.

 

Numa mesa onde se senta o Presidente da República e o seu opositor, ninguém tem autorização para se aproximar e ouvir a conversa. Salvo, óbvio, o garçom. Por isso, não estranhei quando, sentado no Café de Flore em Paris, um garçom, meu amigo de muitos copos de vinho, aproximou-se e perguntou: “Quem matou Marielle? Será que agora vão descobrir?”. Interessante ver como a perplexidade da impunidade ultrapassa muito nossa questão regional. Paris inaugurou, em 21 de setembro de 2019, o Parque Marielle Franco, como a gritar forte: não esqueceremos!

 

O fato é que a delação premiada do tal Élcio Queiroz, que, sentindo-se traído, resolveu falar, oferece provas e evidências que corroboram a sua narrativa. Ao que tudo indica, a apuração sobre os executores está sacramentada. O que nos interessa agora, a nós e ao mundo, é chegar aos mandantes. Tem uma frase no depoimento que muda, em parte, a investigação e que impressiona. Perguntado se determinada pessoa estaria viva, ele afirma de maneira blasé: “não que eu saiba, tanta gente morreu…”. A vida, para esses milicianos, não tem nenhuma importância, zero de significado. O que interessa é o poder controlado pelas escórias da política nacional. A milícia é uma força real no Brasil que ousou ocupar os palácios do poder. Ou nós a derrotamos, ou a escatologia vai vencer e a barbárie continuará dando as cartas.

 

Sem querer precipitar impressões e considerações em um momento tão sério, entendo que um círculo se fecha sobre os mandantes do assassinato de Marielle. São muitos os pontos soltos que agora vão se fechando sob a investigação séria e independente da Polícia Federal junto com a parte republicana da Polícia e do Ministério Público do Rio. Como advogado criminal, sei o que significa isso. Vai faltar ar. Vão sobrar cotoveladas e empurrões. Vão afunilar as hipóteses de obstrução e manipulação. O medo e a angústia voltarão a rondar as noites de quem tem culpa. Os porteiros, os sicários, os informantes e os taxistas.

 

Basta lembrarmos que, em 2021, executaram o Edmilson de Oliveira, o Macalé, que foi quem contratou o assassino que puxou o gatilho contra Marielle. Ou seja, os autores intelectuais mandaram matar quem contratou. Virou um círculo sem fim. Agora, terão que mandar matar quem mandou matar. E aí por diante. Vão matando. Fizeram uma rede de proteção que só se sustentou por causa do governo fascista e miliciano. Tudo virá à tona. Em um governo sério e democrático, os assassinos, os cúmplices e os mandantes terão que prestar contas. Vai ser um encontro da verdade com a justiça. E nós responderemos ao mundo quem mandou matar Marielle.

 

Lembrando-nos de Sophia de Mello Breyner:

 

Não podemos aceitar.

O teu sangue não seca.

Não repousamos em paz na tua morte.

A hora da tua morte continua próxima e veemente.

E a terra onde abriram a tua sepultara

É semelhante à ferida que não fecha.

A noite não pode beber nossa tristeza

E por mais que te escondam não ficas sepultado.”

 

Antônio Carlos de Almeida Castro, Kakay

 

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