PAZ DOS CEMITÉRIOS

 

Chegou um tempo em que não adianta morrer.

Chegou um tempo em que a vida é uma ordem.

A vida apenas, sem mistificação.”

Carlos Drummond de Andrade, poema Os Ombros Suportam o Mundo

 

Em um mundo tão conturbado, no qual o ódio incita a violência e a ignorância parece ser parte do dia a dia de boa parte da sociedade, ser feliz é quase uma ofensa. A desigualdade social, a fome de 33 milhões de brasileiros, o fosso que se abriu entre as pessoas, o desemprego e a falta de empatia, enfim, o caos em que estamos vivendo, levam-nos a refletir como devemos nos posicionar neste momento trágico do país. Reconheço que, mesmo com todas as imensas angústias que nos assolam, a vitória do Lula é um afago no coração dos que têm sede e fome de justiça.

 

Vencer um fascista sem limites, éticos ou morais, com toda a estrutura governamental em uma reeleição – usando o dinheiro público como água -, e enfrentar a indústria das fake News, assim como a falta de critério mínimo de paridade de armas trouxeram a esperança de volta.

 

É interessante constatar que somente o Lula seria capaz de tal feito. Ele próprio reconheceu isso no discurso em minha casa logo após a diplomação. Ficou claro que ser reeleito pela terceira vez não era o primeiro pensamento dele. Mas tornou-se necessário parar o avanço do fascismo, que desestruturava todas as bases humanitárias do Estado brasileiro.

 

Mais quatro anos de Bolsonaro e nós não conseguiríamos recuperar o Brasil. A política de terra arrasada e de saque sistemático à coisa pública destruiriam qualquer hipótese de voltarmos a ser um país civilizado. Foi com esse pensamento que Lula resolveu se lançar como candidato, para que não sucumbíssemos definitivamente. E, nós sabemos, somente ele poderia reunir todos os democratas que não desistiram do Brasil.

 

Agora, é hora de fazer valer nossas promessas de um país mais justo e mais igual. Será uma tarefa árdua, dura e sofrida. O desmantelamento em todas as áreas essenciais foi brutal. Houve um verdadeiro extermínio das condições básicas de sustentação civilizatória em praticamente todos os setores. Na minha área, que envolve o fortalecimento e o respeito ao Estado democrático de direito, é muito fácil de constatar o caos. As inúmeras investidas, vulgares até, de quebra da institucionalidade não deixam pairar dúvidas sobre o ataque incessante que esse governo fez, buscando a ruptura constitucional.

 

O levantamento feito pelo grupo de transição, sobre as áreas mais sensíveis, é desanimador e avassalador. Numa análise séria e digna do Brasil de hoje, nós constatamos que a gestão bolsonarista levou o país para um precipício, para um desastre econômico e social. Estamos literalmente caindo pelas tabelas.

 

Por tudo isso, é fundamental que a sociedade brasileira apoie o governo Lula. Não é o momento de revirarmos sentimentos negativos. Eu vi nos olhos dele a alegria em poder renovar, em cada um de nós, a esperança por dias naturalmente melhores. Uma esperança real, não apenas a do jingle que embala a todos nós. O verdadeiro milagre que nos encanta é poder ter a voz do Lula coordenando nossa esperança. Na verdade, a voz, a luz, o olhar, o sorriso e a maneira de nos encher de sonhos. Esse é o verdadeiro milagre operado em nós: a coragem de acreditar que é possível derrotar o obscurantismo, a barbárie e a desgraça.

 

Eis o nosso próximo sonho coletivo: apoiar vigorosamente o novo governo, que significa a hipótese de mudança e de enfrentamento do fascismo. A disposição e a coragem do Lula em sair candidato à Presidência nos deu um alento. A campanha nas ruas nos encheu de esperança, mesmo nos mostrando, muitas vezes, uma realidade estranha e desanimadora. Mas resistimos. E a vitória nos deu a chance de sermos felizes de novo. Não uma felicidade falsa ou só fantasiada, mas real, vivida.

 

O país vai voltar a ser um lugar onde as coisas simples acontecem e a nossa gente vai ter coragem de tentar ser leve e solidária. Nos novos tempos, seremos quase obrigados a sermos felizes. E vamos abandonar o ódio, o rancor e a intolerância. Vamos tentar reunir os amigos antigos e reanimar os grupos de whatsapp com parentes que se perderam ao longo da turbulência fascista. Coisas simples, mas que nos levem de volta à normalidade afetiva. Usar o amarelo sem ter medo de ser ameaçado, assim como frequentar restaurantes e bares sem ter que ouvir impropérios e provocações vulgares. Ou seja, viver a vida como pessoas normais sem que o fanatismo banal e idiotizante de grupos que mais parecem uma seita possa impedir a gente de ser feliz.

 

E ter a maturidade de entender que só viveremos a plenitude democrática com as instituições funcionando harmonicamente. Com os Poderes cumprindo a Constituição sem precisar recorrer a arroubos autoritários. E para que isso ocorra, é necessário responsabilizar criminalmente os que investiram contra a estabilidade democrática, senão eles voltarão a assombrar. Queremos o respeito ao Estado democrático de direito e não a paz dos cemitérios.

 

Lembrando-nos do poeta Pedro Calasans, no poema Ao romper D’Alva:

 

Página feia, que ao futuro narra

Dos homens de hoje a lassidão, a história

Com o pranto escrita, com suor selada

Dos párias misérrimos do mundo!…

Página feia, que eu não posso altivo

Romper, pisar-te, recalcar, punir-te…

 

Antônio Carlos de Almeida Castro, Kakay

Publicado no Dia

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